A história por trás do casal em foto apontando armas para manifestantes do Black Lives Matter
Casal americano ganhou notoriedade instantânea por apontar armas para os manifestantes; mas o que realmente aconteceu naquele dia e por que eles foram convidados a falar em convenção republicana?
Mark e Patricia McCloskey ganharam notoriedade instantânea após um vídeo, em que aparecem acenando e apontando armas para manifestantes do Black Lives Matter do jardim em frente à sua mansão na cidade de St. Louis, viralizar. Agora, eles voltaram ao centro dos holofotes como oradores na Convenção Nacional Republicana.
Era 28 de junho e o crepúsculo estava começando a cair sobre a cidade, localizada no estado americano do Missouri, quando um grupo de várias centenas de manifestantes convergiu no cruzamento de uma rua movimentada de seis pistas chamada Kingshighway. É a via principal de uma parte abastada da cidade conhecida como Central West End.
Alguns empurravam bicicletas, outros carregavam cartazes do Black Lives Matter, quase todos usavam máscaras enquanto entoavam cânticos, cantavam e começavam a subir e descer a rua, que estava fechada para o tráfego. Seu destino final era a casa da prefeita de St. Louis, Lyda Krewson, a vários quarteirões de distância.
"Lyda, renuncie", gritavam eles em um cruzamento do lado de fora de um hotel quatro estrelas. "Leve a polícia com você!"
Os manifestantes estiveram nas ruas por semanas protestando contra o assassinato de George Floyd em Minneapolis, e muitos eram veteranos do movimento de protesto que surgiu após a morte de Michael Brown, em 2014, nas proximidades de Ferguson, também em Missouri.
Nesta noite em particular, os manifestantes estavam particularmente indignados por causa de um incidente específico. Dois dias antes, durante a transmissão ao vivo programada sobre covid-19 da prefeita Krewson, ela leu em voz alta cartas de manifestantes que a instavam a cortar o financiamento do Departamento de Polícia Metropolitana de St Louis ("defund the police").
Ela também leu os nomes completos e, em alguns casos, os endereços dos signatários das cartas. Algumas pessoas interpretaram isso como uma tentativa de expor os manifestantes — compartilhando publicamente informações de identificação — e acusaram Krewson de táticas de intimidação. No dia seguinte, ela se desculpou e retirou a live do Facebook.
No entanto, foi feito um apelo por toda a cidade para que os manifestantes convergissem para a porta da casa de Krewson no Central West End, exigindo sua renúncia. Centenas responderam à chamada. Entre eles, estavam membros do clero e políticos, como a então pré-candidata democrata à Câmara dos Representantes Cori Bush, que acabaria por ganhar as primárias no início de agosto, derrotando o atual representante do distrito no Congresso.
Após cerca de duas horas de manifestação na Kingshighway, os manifestantes começaram a se dirigir para a casa de Krewson. Eles caminharam para o norte e viraram à esquerda em direção a uma rua chamada Portland Place, que é bloqueada em ambas as extremidades por pedras imponentes e portões de ferro forjado. Sinais marcados como "Propriedade privada" podem ser vistos em cada extremidade.
Uma das casas em Portland Place é um espetacular palácio de estilo renascentista de US$ 1,15 milhão, construído por uma herdeira da cervejaria Anheuser-Busch (adquirida em 2008 pela belgo-brasileira InBev) no início do século 20. Esta é a casa de Mark e Patricia McCloskey, um casal de advogados especializado em lesões corporais.
O confronto
A forma como tudo começou foi alvo de controvérsia. Em uma entrevista subsequente à imprensa, Mark McCloskey disse que os manifestantes "derrubaram" o portão.
"Assim que disse as palavras 'propriedade privada', isso pareceu enfurecê-los", disse ele à Fox News. "Corri para dentro, peguei meu rifle. Comecei a ficar na ala do pátio dizendo: 'Propriedade privada! Saia! Saia daqui!' Isso parecia fazê-los querer se aproximar ainda mais. Eles continuaram chegando."
O advogado do casal na época compartilhou fotos do portão, que estava torcido e quebrado do lado esquerdo. "Uma multidão de pelo menos 100 pessoas quebrou os históricos portões de ferro forjado de Portland Place, destruindo-os, e avançou em direção a minha casa, onde minha família estava jantando do lado de fora e nos fez temer por nossas próprias vidas", disse Mark McCloskey à emissora de TV KMOV.
No entanto, uma transmissão ao vivo da frente da passeata mostra que os primeiros manifestantes passaram por um portão intacto que estava sendo mantido aberto. O fotógrafo freelance e estudante de graduação em jornalismo da Universidade de Missouri Daniel Shular disse à BBC que o portão foi destrancado quando os primeiros manifestantes entraram. "As pessoas simplesmente andaram até lá e abriram o portão", disse ele, estimando ser a sexta pessoa a passar. "Parecia normal para mim quando eu passei."
Mas a maioria dos analistas jurídicos diz que os manifestantes estavam invadindo propriedade alheia quando entraram em Portland Place.
Rasheen Aldridge, deputado estadual e um dos organizadores da marcha, disse que entrar na Portland Place deveria ser considerado um ato de desobediência civil. "Assim como em muitos protestos desobedientes, mesmo nos anos 60, você infringe as leis, faz as pessoas se sentirem desconfortáveis. Não estamos fazendo nada para prejudicar ou colocar alguém em perigo", disse ele ao KMOV.
Ainda não está claro em que ponto o portão foi danificado e por quem.
Momentos depois, Mark McCloskey apareceu em seu jardim segurando um rifle. Ele estava separado dos manifestantes por uma grande cerca viva. "Dê o fora da minha vizinhança", gritou ele. "Propriedade privada — saia. Saia." Alguns manifestantes gritaram "acalme-se", enquanto outros o xingaram.
Os manifestantes gritaram para McCloskey que a rua é "propriedade pública", o que não é verdade em Portland Place — trata-se de uma propriedade privada, controlada por um trust. Os moradores pagam pela sua gestão e manutenção da rua, bem como pela segurança privada.
De acordo com a análise do repórter investigativo do jornal St Louis Post-Dispatch Jeremy Kohler, as evidências de vídeo não mostram os manifestantes entrando na propriedade de McCloskey, mas permanecendo na calçada e na rua.
Pouco mais de um minuto depois, Patricia McCloskey saiu pela porta da frente, descalça, com uma pequena pistola de prata. Ela apontou diretamente para os manifestantes na calçada, enquanto gritava: "Vão embora!"
Os manifestantes reagiram com gritos, desde apelos por calma a insultos e palavrões. "Por que você está apontando essa arma para nós?" "Temos crianças aqui!" "Você é uma covarde!" "Ninguém quer machucar você."
Alguns manifestantes pediram a outros que passassem rapidamente, outros pararam para continuar a discutir e insultar o casal enquanto eles ficavam lado a lado com suas armas nos degraus da frente de sua casa. Na maior parte do tempo, Patricia McCloskey manteve sua pistola apontada para os manifestantes.
"Pensei que Patricia McCloskey fosse me matar e não dormi desde que ela apontou sua arma para meu rosto", disse o manifestante James Cooper ao St Louis Post-Dispatch.
Os McCloskey afirmaram mais tarde que dois homens brancos do grupo ameaçaram suas vidas, embora pouco do que foi dito entre os dois lados seja inteligível nas transmissões ao vivo do confronto.
Todo o incidente durou cerca de 12 minutos antes de todo o grupo passar pela casa dos McCloskey e descer a rua. Os manifestantes saíram do portão na extremidade oposta de Portland Place e continuaram em seu caminho para a casa da prefeita. Conforme planejado, uma grande multidão de centenas de pessoas se reuniu por várias horas ali, pintando a palavra "Renuncie" na rua em frente à casa dela.
Os McCloskey mais tarde contariam à polícia que os manifestantes estavam armados. Os manifestantes dizem que ninguém do seu lado sacou uma arma. O estado de Missouri permite o porte aberto de armas de fogo, desde que não seja feito de forma ameaçadora.
O casal também disse que sacou as armas por causa das ameaças contra suas vidas. No entanto, Mark McCloskey também disse a um entrevistador da KMOV que "as ameaças aconteceram provavelmente depois que pegamos as armas".
O que aconteceu depois
Os vídeos e fotos dos McCloskey — um casal branco rico apontando armas de fogo do gramado da frente de sua propriedade palaciana para os manifestantes, que incluíam ativistas negros e brancos — viralizaram instantaneamente. Mas o incidente também foi politizado com a mesma rapidez.
Por meio de seu advogado, os McCloskey recusaram um pedido de entrevista à BBC e não responderam a uma lista detalhada de perguntas sobre o incidente.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, retuitou o vídeo do confronto e mais tarde comentou que os McCloskey correram o risco de serem "espancados, se tivessem sorte".
Os McCloskey contrataram um advogado e começaram a dar entrevistas à CNN, Fox News e outros veículos nacionais. Mark McCloskey chamou os manifestantes de "multidão", o incidente de "terrorismo", e disse que o incidente arruinou sua vida.
Uma declaração inicial de seu advogado dizia: "Tanto o sr. quanto a sra. McCloskey agiram legalmente em sua propriedade, que fica em uma via privada fechada na cidade de St Louis. Suas ações foram baseadas exclusivamente no medo e apreensão, cuja gênese não era relacionado a raça."
O advogado acrescentou: "Meus clientes, como seres humanos com pouca melanina, respeitam completamente a mensagem que Black Lives Matter precisa transmitir, especialmente para os brancos."
Em 10 de julho, a polícia municipal revistou e apreendeu as duas armas do casal. Cerca de um mês depois, um procurador de St. Louis, Kim Gardner, indiciou ambos por "uso ilegal de arma", o que é crime. A denúncia afirma que ambos exibiram suas armas semiautomáticas "prontamente capazes de uso letal, de forma irada ou ameaçadora".
"Temos sorte de que esta situação não escalou para o uso de força letal", escreveu Gardner em um comunicado na época. "Recomendarei que os McCloskey participem de programas de reabilitação. Acredito que isso serviria como uma resolução justa para o assunto."
Políticos conservadores reagiram imediatamente. O senador republicano Josh Hawley chamou o indiciamento de "ultrajante abuso de poder" por parte do promotor. O governador do Missouri, o republicano Mike Parson,disse que, se condenados, ele perdoaria os McCloskey. E de acordo com sua assessora de imprensa, o presidente Trump disse que o que estava acontecendo com os McCloskey era "absolutamente absurdo". Ele disse que eles estavam apenas "se defendendo de manifestantes violentos".
O procurador-geral do Missouri, Eric Schmitt, também entrou com uma ação legal pedindo arquivamento do caso, dizendo que processar os McCloskey seria uma violação de seu direito de portar armas e defender sua propriedade segundo a lei da "doutrina do castelo" do Missouri.
A "doutrina do castelo" estabelece que o lar é o "castelo do cidadão" e, portanto, quando este é ameaçado dentro de sua casa (por invasão domiciliar, por exemplo), pode até matar, com garantia da imunidade prevista no princípio da legítima defesa.
"Enquanto este caso continuar, isso enviará uma mensagem pública a todos os moradores do Missouri de que, se eles se atreverem a exercer seu direito fundamental de manter e portar armas em defesa da família e do lar, podem ser processados e enviados para a prisão", Schmitt escreveu em seu despacho.
O casal
Os McCloskey são proprietários de um escritório de advocacia especializado em lesões corporais e afirmam que, em seu trabalho, defendem os direitos civis de seus clientes. Atualmente, Mark McCloskey está representando um cliente em um processo contra brutalidade da polícia federal.
No entanto, de acordo com documentos judiciais e outros relatos da mídia, os McCloskey não são alheios a polêmica.
Em um artigo para o St Louis Post-Dispatch, o jornalista investigativo Jeremy Kohler detalhou uma longa lista de supostas batalhas jurídicas que Mark McCloskey travou contra seus vizinhos, colegas e até mesmo com seu pai e sua irmã, principalmente por questões de propriedade.
Em um processo judicial, eles admitiram ter usado uma arma para forçar outro morador de Portland Placea sair de um pedaço de gramado que alegaram ser seu, porque este "se recusou a acatar os avisos dos McCloskey de ficar longe de tal propriedade".
De acordo com o relato de Kohler, os McCloskey também processaram os administradores do condomínio por descumprirem a regra de que apenas casais poderiam morar lá.
Kohler também se deparou com um relato de que os McCloskeys destruíram colmeias do outro lado de um muro de sua casa. Elas tinham sido colocadas ali pela sinagoga vizinha como parte de um programa educacional para crianças.
"As crianças choravam", disse o rabino a Kohler.
A Convenção Nacional Republicana
Em entrevista a uma estação de rádio em St. Louis, Mark McCloskey expressou preocupação com a recente vitória de Cori Bush nas primárias democratas. Ele mencionou que ela havia participado da passeata fora de sua casa, e chamou a perspectiva de sua eleição para o Congresso de "assustadora".
"Acho que a questão aqui é de lei e ordem — e da esquerda, das pessoas na extremidade esquerda do espectro que influenciam o governo por meio da violência", disse ele.
Os manifestantes, por outro lado, disseram que o incidente é apenas mais uma prova de que o direito ao protesto pacífico não está sendo respeitado e, na verdade, foi alvo de ameaças de violência.
"Quando pessoas como Mark e Patricia McCloskey empunham armas contra manifestantes não violentos marchando nas ruas, eles se tornam ídolos instantâneos", escreveu Cori Bush no Twitter. "Isso encoraja o ódio e coloca nossa segurança e nossas vidas em risco."
Mas no discurso do casal na convenção republicana na noite de segunda-feira (24), McCloskey não tinha dúvidas de que ele e sua esposa eram as verdadeiras vítimas.
"Nem uma única pessoa na multidão fora de controle que você viu em nossa casa foi acusada de um crime", disse ele.
"Mas você sabe quem foi? Nós fomos [acusados]. Eles realmente nos acusaram de um crime por ousar defender nossa casa."
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