Como disputa entre Bolsonaro e Doria pode atrasar imunização dos brasileiros contra covid-19
Disputa com governador põe em risco verba de R$ 80 milhões para fábrica de vacinas do Instituto Butantan. Ideal seria investir no maior número possível de vacinas, dizem especialistas.
Na manhã de quarta-feira (21/10), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) usou sua conta oficial no Facebook para fazer um giro de 180 graus na estratégia brasileira de enfrentamento ao novo coronavírus.
Com apenas 67 caracteres, o presidente dinamitou um acordo de cerca de R$ 2 bilhões de reais. O Ministério da Saúde planejava a aquisição de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em conjunto com o Instituto Butantan, uma instituição pública do governo de São Paulo. O acordo tinha sido anunciado na tarde desta terça (20), pelo ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello.
A decisão de Bolsonaro também põe em dúvida um investimento de R$ 80 milhões do governo federal em uma fábrica de vacinas do Butantan, que está sendo reformada e ampliada para produzir o imunizante contra o novo coronavírus.
Ao longo desta quarta-feira, o presidente deixou claro que sua decisão estava relacionada ao desacordo com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), visto por Bolsonaro como seu virtual concorrente na disputa pelo Palácio do Planalto em 2022. O tucano, por sua vez, também aproveitou uma visita a Brasília para alfinetar o presidente.
Outro fator que pesou na decisão de Bolsonaro foi a pressão de militantes de direita: desde o anúncio do ministro da Saúde, passaram a circular em grupos de WhatsApp de apoiadores do governo teorias conspiratórias contra a vacina desenvolvida pela Sinovac. Termos como "VaChina" e "Fraudemia" são empregados com frequência nestas correntes.
Ao mesmo tempo, especialistas em imunização e saúde pública consultadas pela BBC News Brasil criticam a decisão de não comprar as doses da CoronaVac: o país deveria investir em várias iniciativas de vacinação, ao invés de colocar todas as fichas em um único imunizante.
No começo da noite, em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro reiterou a decisão — disse que o governo federal não comprará nenhuma vacina oriunda da China, mesmo que seja aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
"Da China nós não compraremos. É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem. Esse é o pensamento nosso", disse Bolsonaro.
A reportagem da BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde para comentar o assunto, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.
Ideal é diversificar vacinas, dizem especialistas
Segundo especialistas em imunização e saúde pública ouvidas pela BBC News Brasil, a decisão do governo federal não foi estrategicamente acertada — o ideal é diversificar as opções de vacinas, pois há o risco de que algumas das iniciativas não deem o resultado esperado.
Atualmente, o governo federal está investindo em duas frentes. Há um acordo com a farmacêutica britânica AstraZeneca, para a compra de 100 milhões de doses da chamada "vacina de Oxford". E, no começo de outubro, o Ministério da Saúde aderiu ao Instrumento de Acesso Global de Vacinas Covid-19, o Covax Facility. Trata-se de uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde para a compra em bloco de imunizantes.
No caso do Covax, o Brasil investiu R$ 2,5 bilhões para a aquisição de 40 milhões de doses.
Em relação às vacinas do Instituto Butantan, as 46 milhões de doses chegarão ao Brasil de qualquer forma, pois já estão contratadas pelo centro de pesquisa paulista — a diferença é que não serão mais incorporadas ao Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde. Ou seja, não necessariamente estarão disponíveis em todo o país.
Fontes no Instituto ouvidos pela BBC News Brasil também disseram que o investimento de R$ 80 milhões para a renovação da fábrica de imunizantes, anunciado dias atrás pelo ministro Pazuello, ainda não feito — e agora há dúvidas sobre se o repasse será ou não efetivado.
"O Programa Nacional de Imunização (PNI) é um programa muito bem estabelecido e muito bem avaliado no mundo todo. E sempre o Ministério da Saúde esteve à frente da aquisição das vacinas e da distribuição. Então seria muito importante, e interessante, que o MS pudesse estar à frente da aquisição, novamente", diz Ana Freitas Ribeiro, médica epidemiologista Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.
"E (seria bom) que a primeira (vacina) a ser comprovada, que estivesse disponível para todos os brasileiros. E não apenas para aquele Estado (da federação) que puder comprar. Então eu acho bem preocupante essa atitude do Ministério da Saúde de não adquirir uma vacina que, se for protetora, o quanto antes for distribuída para a população, especialmente as de maior risco, melhor", diz ela, ressaltando que qualquer imunizante só deve ser distribuído depois de passar na Fase 3 de testes. A Fase 3 é aquela na qual se verifica se o medicamento realmente protege contra a doença.
"A importância de se adquirir várias vacinas e não uma só, e isso é comum também no Brasil (em outras doenças), é você conseguir vacinar a maior parte da população. Se você for depender de uma produção só, pode acabar sem conseguir uma boa cobertura da população, que é muito grande. Quando uma vacina se comprovar eficaz, vai haver uma procura grande de vários países", diz Ana Freitas Ribeiro.
"Considerando o nível de incerteza em relação a qual vacina vai funcionar, a melhor estratégia é investir em várias, pra que quando saírem os resultados a população, mesmo que uma fração, possa começar a ter acesso", reforça a imunologista Ariane Cruz, que é doutora em medicina clínica pela universidade de Oxford, no Reino Unido, e especialista no desenvolvimento de vacinas.
"Nesse sentido, foi ótima a decisão do governo em ter se juntado ao Covax, que é uma instituição que foi criada exatamente para facilitar investimento em um portfólio de vacinas ao invés de uma só", diz Ariane Cruz.
'Não tenho qualquer diálogo com João Doria', diz Bolsonaro
Na tarde de ontem, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou a compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac. O anúncio foi feito após uma longa reunião virtual com os governadores de vários Estados — inclusive o paulista João Doria, que foi o anfitrião do encontro.
A reação de Jair Bolsonaro começou pouco depois.
Ainda nas primeiras horas da quarta-feira (21/10), e antes mesmo de anunciar formalmente o cancelamento da compra, Bolsonaro passou a dizer a apoiadores no Facebook que o governo não compraria doses da vacina da Sinovac. Também criticou a pasta da Saúde. "Qualquer coisa publicada (na imprensa) sem qualquer comprovação, vira TRAIÇÃO", disse, em resposta a um internauta que reclamou do anúncio de Pazuello.
O presidente também mandou mensagem a ministros de Estado e a aliados, dizendo categoricamente que não participaria de qualquer cooperação com Doria. "Alerto que não compraremos uma só dose de vacina da China, bem como o meu governo não mantém qualquer diálogo com João Dória na questão do Covid-19. PR Jair Bolsonaro", disse Bolsonaro na mensagem.
Depois de torpedeado por Bolsonaro, o próprio ministério da Saúde voltou atrás: coube ao secretário-executivo da pasta, Élcio Franco, dizer que "não há a intenção de compra de vacinas chinesas" contra a Covid-19. O ministro de Estado da Saúde, Eduardo Pazuello, não participou da entrevista aos jornalistas.
"Não houve qualquer compromisso com o governo do Estado de São Paulo ou com o seu governador, no sentido de aquisição de vacinas contra a Covid-19. Tratou-se de um protocolo de intenção entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantan, sem caráter vinculante, por se tratar de um grande parceiro do Ministério da Saúde na produção de vacinas para o Programa Nacional de imunizações", disse Élcio. Segundo ele, a fala do ministro da Saúde no dia anterior foi "mal interpretada".
Doria: Vacina é 'de todos os brasileiros'
João Doria, por sua vez, chegou a comemorar a compra das doses pelo governo federal. Em seu perfil no Twitter, o governador postou na terça-feira (20) o vídeo de um trecho da reunião com Pazuello, com a legenda "Venceu o Brasil".
Já nesta quarta-feira (21/10), o governador aproveitou uma visita a Brasília para alfinetar Bolsonaro.
"A vacina do Butantan é a vacina do Brasil, de todos os brasileiros", disse o governador a jornalistas no Congresso, enquanto segurava uma unidade da vacina chinesa. Ele estava acompanhado pelo diretor do Butantan, Dimas Covas. Doria também pediu a Bolsonaro que tenha "grandeza para liderar o país" durante a pandemia, e que evite contaminar o combate à pandemia com uma disputa ideológica.
Doria também pediu respeito a Pazuello. "Não é razoável que um presidente não respeite o seu ministro da Saúde", disse o tucano.
Para o cientista político Cláudio Couto, o cálculo por detrás da ação de Bolsonaro é simples: tentar diminuir o bônus político do governador de São Paulo ao trazer uma das primeiras vacinas para o país.
"Como existe esse acordo com do governo de São Paulo para trazer a vacina tão logo esteja disponível, o Doria pode acabar aparecendo como aquele que largou na frente na corrida da vacina, no Brasil. E aí o Bolsonaro tenta criar receio em torno dessa vacina para que as pessoas não valorizem esse feito", diz ele. "É de alguma maneira dizer 'o Doria está trazendo, mas está trazendo um negócio que é duvidoso, que pode não funcionar'", diz Couto, que é professor da FGV-SP.
Ainda que a ação de Bolsonaro empolgue a parte mais aguerrida da militância, é possível que o presidente tenha um ônus político com outra parte da população — que sente que o boicote à vacina põe em risco vidas de brasileiros, diz Couto.
"O Bolsonaro vai pagar um preço político também, por sabotar a vacina", diz Couto. "A questão é saber como essa narrativa vai se desenrolar daqui para frente, como o próprio Doria vai reagir à provocação do presidente", diz Couto.
Pressão da militância e teorias conspiratórias
Desde o anúncio do Ministério da Saúde na terça-feira, militantes bolsonaristas passaram a parceria com o Instituto Butantan — tanto em redes sociais abertas quanto em em grupos fechados do WhatsApp.
Para o influenciador bolsonarista Silvio Grimaldo, por exemplo, o episódio deixou claro que "Bolsonaro tomou uma bolada nas costas do general (Pazuello)".
Termos como "VaChina" e "Fraudemia" rapidamente se tornaram comuns em grupos de WhatsApp monitorados pelo site de checagens Aos Fatos — uma ferramenta desenvolvida pelo projeto acompanha atualmente 273 grupos de WhatsApp sobre o tema.
As teorias conspiratórias que circulam nestes grupos são variadas, mas atualmente têm em comum o foco no governador de São Paulo.
"O foco hoje é o (governador João) Doria, mas se qualquer outro governador fechar parcerias de vacinas com a China, vai também ser alvo de campanhas de desinformação", diz a jornalista Tai Nalon, diretora executiva do Aos Fatos.
"A desinformação, no estágio atual, mistura as ambições internacionais da China; e suas questões de guerra comercial com os Estados Unidos; e a postura anti-China do (Donald) Trump (presidente dos EUA). Essa desinformação decorrente de uma postura anti-China, produzida nos Estados Unidos, é muitas vezes importada para cá e adaptada ao nosso contexto local", diz ela.
"Não é uma postura negacionista anti-vacina clássica (...). Existe até um componente da teoria da conspiração QAnon, que está se proliferando no Brasil, de que microchips do (fundador da empresa de tecnologia Microsoft) Bill Gates estariam inseridos nas vacinas para que ele consiga monitorar (as pessoas) e promover o satanismo, ou o comunismo", diz.
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