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Coronavírus: como Portugal, exemplo na 1ª onda da pandemia, chegou à beira do colapso na 2ª

Fila de ambulâncias em um hospital de Lisboa ilustra as dificuldades vividas em Portugal - AFP
Fila de ambulâncias em um hospital de Lisboa ilustra as dificuldades vividas em Portugal Imagem: AFP

Mar Pichel - BBC News Mundo

03/02/2021 07h39

A atual situação de Portugal em decorrência do novo coronavírus é dramática.

O país europeu havia tido um relativo sucesso no combate à covid-19 durante a primeira onda da pandemia. Porém, os casos dispararam recentemente. Isso causou uma sobrecarga no sistema de saúde. Hospitais de campanha foram abertos e pacientes tiveram de ser transferidos a unidades de saúde em uma ilha portuguesa. Existe até um plano para enviar alguns doentes a outros países.

Nas últimas duas semanas de janeiro, Portugal registrou a taxa de infecção por covid-19 mais alta da União Europeia: 1.429,43 por 100 mil habitantes, segundo os dados do Centro Europeu para a Prevenção e controle de Enfermidades (ECDC, por suas siglas em inglês).

O país também tem a taxa de mortalidade mais elevada da União Europeia: 247,55 por milhão de habitantes.

Em janeiro, Portugal registrou os seus dados mais trágicos desde o início da pandemia: foram 5.576 mortos (44,6% do total registrado desde os primeiros casos) e 306.838 infectados (42,6% do total).

Dos primeiros casos registrados no início de 2020 até a última segunda-feira (01/02), Portugal já teve 12,7 mil mortos pelo novo coronavírus e 726,3 mil infectados.

As autoridades e especialistas em saúde atribuem o aumento de casos e mortes a dois fatores principais: a expansão da variante britânica do novo coronavírus, que é mais contagiosa, e um grande relaxamento do isolamento social durante as festas de fim de ano.

Hospitais em colapso

Diversos pontos do país, de 10 milhões de habitantes, possuem hospitais em situação de calamidade. O cenário é particularmente dramático na região de Lisboa, que acumula a metade do total de infecções e mortes de Portugal.

Um exemplo da situação dramática são as imagens de filas de ambulâncias esperando durante horas que haja um novo leito para os pacientes com a covid nas unidades de saúde.

Na semana passada, três pessoas não conseguiram vagas em hospitais de campanha e tiveram de ser transferidos em um helicóptero à ilha da Madeira, em Portugal — o arquipélago está localizado a mais de 960 km da região de Lisboa, onde os pacientes estavam inicialmente.

O sistema de saúde pública de Portugal conta com 850 leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) destinadas a pessoas com a covid-19. Há também 420 leitos para pacientes com outras doenças.

Com um total de 865 pacientes com a covid-19 recebendo cuidados intensivos e 6,8 mil em leitos clínicos, os hospitais portugueses estão sem leitos. Além disso, há também a escassez de médicos e enfermeiros.

Muitos profissionais de saúde portugueses foram para outros países europeus, principalmente o Reino Unido, onde existem salários melhores.

As festas de fim de ano, a "fadiga pandêmica" e a cepa britânica

Na primeira onda de casos, Portugal teve índices de covid-19 muito mais baixos que os países do seu entorno. Agora, o grande questionamento é: como o país chegou à situação atual?

Para especialistas em saúde pública há alguns fatores que explicam a atual situação. Entre eles há uma relação nas interações sociais durante as férias de fim de ano — período em que a movimentação era permitida em todo o território e não havia nenhum limite em relação às reuniões familiares — e a propagação da linhagem britânica do coronavírus.

"Em novembro, tínhamos valores aceitáveis de incidência de novos casos. Não havia cifras descontroladas", explica Carla Nunes, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

"O que acreditamos que tenha ocorrido é que as pessoas fizeram pequenas alterações em seus comportamentos, no sentido de serem mais permissivas", acrescenta Nunes em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC).

Elisabete Ramos, professora do Instituto de Saúde Pública da Universidade de Porto, ressalta que as atividades durante as festas de fim de ano, que ela destaca que são consideradas importantes para a cultura local, estão entre os fatores mais relevantes para explicar o aumento drástico de casos no país.

A especialista acrescenta que o cenário atual também é impactado pelo frio, que obriga as pessoas a fecharem os ambientes abertos que recebem o público — facilitando a transmissão do vírus.

Ramos aponta que também há uma "fadiga pandêmica" que faz com que as pessoas sigam menos as medidas restritivas.

"Todo mundo está cansado. Ainda que as medidas restritivas sejam semelhantes, não vemos nas ruas o mesmo nível de confinamento que havia em março passado", explica.

"Esse é o lado ruim de termos tido bons resultados até agora: minimizamos a percepção do risco e acreditamos que podemos romper algumas regras porque não acontecerá nada".

"(Os portugueses) foram muito responsáveis (na primavera) porque estavam em pânico com o que havia acontecido na Espanha e na Itália", pontua Nunes. "As pessoas estavam dispostas a perder o que tivessem que perder porque era isso ou a morte. Essa percepção já não é mais assim".

"Tudo isso se juntou com a nova variante, que nesse momento (de festas de fim de ano) não sabíamos da sua presença em Portugal", completa Nunes.

Na época do Natal, muitos portugueses que migraram para o Reino Unido costumam voltar ao país de origem, assim como os britânicos que têm casas no país luso.

"No momento em que muita gente voltava, nos aeroportos (portugueses) não havia medidas específicas... o que estava ocorrendo estava um pouco escondido (sobre a nova variante)", diz Nunes.

Em 28 de janeiro, o primeiro-ministro português Antônio Costa afirmou que a variante britânica do novo coronavírus já tinha uma prevalência de 32% em todo o país e somente em Lisboa correspondia a 50% dos casos.

Em meados de janeiro, Portugal suspendeu voos do Reino Unido e do Brasil, em razão da nova cepa do coronavírus descoberta no início do ano em Manaus (AM). Ao menos até o início desta semana, ainda não havia nenhum registro da variante brasileira ou da África do Sul em Portugal.

Ajuda internacional

A atual situação levou o governo português a pedir ajuda no exterior. O chamado já foi respondido pela Alemanha e pela Áustria.

O Ministério de Defesa alemão anunciou no domingo (31/01) que enviará uma equipe de médicos a Portugal.

Um avião com 26 médicos e enfermeiros e 50 respiradores artificiais seguirão em direção a Lisboa nesta quarta-feira (03/02), segundo um comunicado do ministério alemão.

Já o chanceler austríaco Sebastian Kurz anunciou que o país receberá pacientes portugueses que precisam de cuidados intensivos.

"É uma exigência de solidariedade europeia ajudar de forma rápida e sem burocracia para salvar vidas. A Áustria já aceitou pacientes em cuidados intensivos da França, Itália e Montenegro durante a pandemia. E agora também aceitará pacientes de cuidados intensivos de Portugal", escreveu Kurz em seu perfil no Twitter.

O subsecretário de Estado e Saúde português, Antônio Lacerda Sales, admitiu na última segunda-feira a possibilidade de transportar pacientes para outros países, caso os hospitais de Portugal não possam atendê-los.

Os especialistas ouvidos pela BBC Mundo consideram que o sistema de saúde português reagiu bem desde o início da pandemia e somente no atual momento chegou ao seu limite.

"O déficit no sistema de saúde — como em relação a camas e profissionais de saúde — é comum a todos os países, porque o conjunto de necessidades é cada vez maior", diz Ramos. "Com um impacto tão grande era fácil que nosso sistema ficasse pior", completa.

"Mas, na verdade, tem se ajustado muito bem, porque ao longo do ano fomos encontrando soluções e somente neste momento está no seu limite", acrescenta.

Endurecimento das medidas

Diante da atual situação, as autoridades portuguesas optaram por novas medidas de isolamento social para tentar frear a propagação da nova onda do coronavírus.

Desde 15 de janeiro, as autoridades reforçaram as medidas sanitárias país. No último domingo, as ações se tornaram ainda mais rígidas para assegurar que os portugueses fiquem em casa.

Os moradores só podem sair de suas residências para atividades como trabalhar — desde que não seja possível o teletrabalho —, comprar bens essenciais, ir ao médico, ajudar idosos ou dependentes, praticar esportes ao ar livre sozinho e fazer pequenas caminhadas, durante as quais é proibido ficar em parques ou se sentar em bancos.

O governo aumentou a vigilância policial e os agentes podem até exigir comprovantes de residência para que as pessoas comprovem que estão passeando nas proximidades de suas casas.

As escolas estão fechadas desde 22 de janeiro, quando foi ordenada a suspensão das aulas por 15 dias.

Além disso, os portugueses não poderão sair durante 14 dias por qualquer meio (aéreo, terrestre, ferroviário, marítimo ou fluvial), exceto para voltar à sua casa, se morar no exterior, ou para ficar perto de sua família.

A atual situação fez com que Portugal restabelecesse os controles das fronteiras terrestres com a Espanha. Apesar disso, os dois países garantem que não se trata de um fechamento de fronteiras, mas sim de estabelecer limites.

Em relação ao controle dos aeroportos, os viajantes de outros países com mais de 500 casos por 100 mil habitantes atualmente devem apresentar um exame PCR com resultado negativo realizado até 72 horas antes da decolagem e ficar em quarentena por 14 dias após chegar ao país.

Ao renovar o estado de emergência na semana passada, o presidente do país, Marcelo Rebelo de Sousa, recentemente reeleito, apelou à responsabilidade.

"O que faremos até março determinará o que vai acontecer na primavera, no verão e, quem sabe, até no outono".