Topo

Esse conteúdo é antigo

'Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo', diz diretora de Médicos Sem Fronteiras

"Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo", diz diretora de Médicos Sem Fronteiras - DIEGO BARAVELLI/MSF
'Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo', diz diretora de Médicos Sem Fronteiras Imagem: DIEGO BARAVELLI/MSF

André Biernath - Da BBC News Brasil em São Paulo

29/04/2021 17h07

Com o país à beira das 400 mil mortes, diretora da ONG avalia o enfrentamento da covid-19 e critica a falta de políticas públicas centralizadas e uniformes.

O Brasil atingiu a marca de 200 mil mortes por covid-19 no dia 7 de janeiro de 2021. Os 300 mil óbitos foram registrados 77 dias depois, em 25/03.

Para alcançar as 400 mil vítimas da infecção pelo coronavírus, o prazo foi cortado pela metade: bastaram 35 dias para que, neste 29/04, o país fatalmente se aproximasse do número e ficasse à beira de se tornar o segundo lugar do mundo a quebrar essa barreira (após os Estados Unidos).

Para Ana de Lemos, diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, a pandemia no país é completamente diferente do que acontece no resto do mundo.

"A situação é extrema e, um ano depois que tudo começou, ainda não temos uma resposta nacional. As unidades de saúde são deixadas à própria sorte, sem protocolos de prevenção, equipamentos de proteção, oxigênio, insumos e remédios", aponta.

"Muitas vidas que perdemos poderiam ter sido salvas se tivéssemos estrutura e organização", completa.

Nascida em Angola e cidadã portuguesa, Lemos é formada em Publicidade e Relações Públicas e fez pós-graduação em Gestão Ambiental, Estudos de Paz e Resolução de Conflitos, Relações Internacionais e Geopolítica.

A especialista entrou para o MSF em 2000 e trabalhou em crises sanitárias e humanitárias em várias partes do mundo, com passagens por Hungria, Libéria, Moçambique, Nigéria, Palestina, Quênia, Sudão, Tanzânia e Zimbábue.

Ela está desde 2017 no Brasil, quando passou a atuar como diretora de comunicação da ONG e foi promovida ao cargo de diretora-executiva a partir de 2018.

Recado que vem de fora

O posicionamento de Lemos está em consonância com um manifesto internacional, que foi assinado pelas altas esferas do MSF.

O texto, divulgado no site e nas mídias sociais da entidade, critica duramente a atuação do governo brasileiro durante a pandemia e classifica a situação no país como uma "catástrofe humanitária".

"Mais de um ano desde o início da epidemia de covid-19 no Brasil, ainda não foi colocada em prática por parte do poder público uma resposta efetiva, centralizada e coordenada à doença. A falta de vontade política de reagir de maneira adequada à emergência sanitária está causando a morte de milhares de brasileiros", escrevem os autores.

Em outro trecho, os líderes da entidade fazem um apelo urgente para que as autoridades nacionais reconheçam a gravidade da crise e organizem uma "resposta centralizada e coordenada".

"O governo federal praticamente se recusou a adotar diretrizes de saúde pública de alcance amplo e com base em evidências científicas, deixando às dedicadas equipes médicas a tarefa de cuidar dos doentes em unidades de terapia intensiva, tendo que improvisar soluções na falta de disponibilidade de leitos", aponta no texto o médico grego Christos Christou, presidente internacional do MSF.

"Isto colocou o Brasil em um estado de luto permanente e o sistema de saúde do país à beira do colapso", completa o especialista.

Mais à frente, a carta critica a politização das medidas preventivas cientificamente comprovadas, como o uso de máscaras e o distanciamento físico.

"Alimentando o ciclo de doença e morte no Brasil está o grande volume de desinformação que circula pelas comunidades do país. Uso de máscaras, distanciamento físico e restrição de movimentos e de atividades não essenciais são rejeitados e politizados".

Christou finaliza pedindo um "recomeço" no enfrentamento da pandemia:

"A recusa em colocar em prática medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas resultou na morte prematura de muitas pessoas. A resposta à pandemia precisa urgentemente de um recomeço, baseado em conhecimentos científicos e bem coordenado, para evitar mais mortes desnecessárias e a destruição de um sistema de saúde conceituado e prestigiado."

Lemos revela que a carta teve uma grande repercussão internacional. "Recebemos ligações e contatos de pessoas de vários países, que se mostraram bastante preocupadas com a situação".

Já no Brasil, não houve nenhuma resposta formal do Ministério da Saúde ou do Governo Federal.

"Já havíamos enviado outros comunicados para o ministério e tentamos reuniões. Mas entendemos que as autoridades devem estar bastante ocupadas neste momento e esperamos que estejam trabalhando para resolver os problemas", diz.

Crise sem precedentes

Lemos, que acompanha de perto o trabalho dos voluntários do MSF e tem a experiência de atuar em outros nove países , diz que não consegue comparar a situação brasileira com outros lugares do planeta.

"A sensação que tenho é que a pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo", avalia.

A diretora relata que a ONG começou a reforçar o enfrentamento da covid-19 no Brasil ainda em abril de 2020, com foco na população de rua, migrantes, refugiados, usuários de drogas, idosos e pessoas privadas de liberdade da cidade de São Paulo.

Em 2021, o trabalho dos voluntários está mais focado na Região Norte, especialmente em Rondônia, Roraima e Amazonas.

"Damos apoio ao Sistema Único de Saúde, o SUS, especialmente em áreas de comunidades indígenas e imigrantes", diz.

Nos últimos meses, um dos focos do trabalho é justamente fomentar o treinamento dos profissionais da saúde que estão na linha de frente.

"Muitos médicos e enfermeiros que atuavam nas Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) tiveram que transformar rapidamente as instalações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Só o fato de ter uma equipe extra ajudando a organizar os fluxos, os protocolos de atendimento e toda essa estrutura, já faz toda a diferença", acredita.

Oportunidades desperdiçadas

Lemos é testemunha ocular de como as informações fazem toda a diferença durante uma crise sanitária.

A diretora lembra que o MSF foi fundado em 1971 na França por um grupo de médicos e jornalistas.

A entidade, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999, sempre entendeu a comunicação como um dos pontos-chave de sua atuação.

Ela se recorda que, durante experiências passadas, as equipes e as instalações da entidade chegaram a ser atacadas pela população local durante surtos e epidemias.

"Em muitos locais, tínhamos que restringir o acesso aos centros de tratamento ou aos funerais, pois a transmissão de doenças infecciosas era dramática", relata.

"Se as pessoas não forem comunicadas e não entenderem a importância daquelas medidas, fica impossível trabalhar durante essas crises", ensina.

E, de acordo com a visão dela, foi justamente isso o que não ocorreu no Brasil durante os últimos meses: sem uma coordenação nacional e com tantas mensagens contraditórias, as pessoas não captaram a real gravidade da covid-19.

"Ainda hoje vemos indivíduos que acreditam e usam cloroquina e ivermectina, como se elas pudessem ter algum efeito contra o coronavírus. As UTIs estão cheias de pacientes que acreditaram no kit covid", observa.

"Enquanto isso, sofremos com a falta de oxigênio, sedativos e outros remédios tão necessários para os casos mais graves", lamenta.

Aprendizados e próximos passos

A diretora do MSF no Brasil espera que as autoridades tenham entendido que a prevenção da covid-19 depende mais de ações comunitárias do que da abertura de novos leitos hospitalares.

"Não se para uma pandemia na UTI, porque os hospitais são sempre o último recurso. Precisamos atuar contra a transmissão de pessoa para pessoa, com restrição da mobilidade e fechamento de todas as atividades não essenciais", sugere.

A especialista também aponta a necessidade de reforçar o uso de máscaras e de criar políticas massivas de testagem e isolamento de casos confirmados.

"Boa parte do mundo já faz isso há tempos e os resultados são claros", atesta.

E os exemplos positivos não vêm apenas de lugares ricos ou desenvolvidos: a diretora do MSF destaca o trabalho feito em nações africanas durante os últimos meses.

"A despeito da subnotificação e da existência de outras doenças infecciosas impactantes, os países da África tiveram governos e políticas muito bem coordenadas, com o fechamento de fronteiras, o incentivo ao uso de máscaras e uma comunicação muito clara com os cidadãos", descreve.

Por fim, Lemos entende que o encerramento da pandemia está necessariamente vinculado à vacinação e aposta que não há solução sem cooperação internacional.

"Nós defendemos, inclusive, a quebra temporária das patentes de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico para que se amplie o acesso a esses recursos", revela.

"Espero que as pessoas entendam que a covid-19 só estará controlada quando houver imunidade global. Enquanto tivermos pessoas desprotegidas, ninguém estará verdadeiramente a salvo", finaliza.