'Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo', diz diretora de Médicos Sem Fronteiras
Com o país à beira das 400 mil mortes, diretora da ONG avalia o enfrentamento da covid-19 e critica a falta de políticas públicas centralizadas e uniformes.
O Brasil atingiu a marca de 200 mil mortes por covid-19 no dia 7 de janeiro de 2021. Os 300 mil óbitos foram registrados 77 dias depois, em 25/03.
Para alcançar as 400 mil vítimas da infecção pelo coronavírus, o prazo foi cortado pela metade: bastaram 35 dias para que, neste 29/04, o país fatalmente se aproximasse do número e ficasse à beira de se tornar o segundo lugar do mundo a quebrar essa barreira (após os Estados Unidos).
Para Ana de Lemos, diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, a pandemia no país é completamente diferente do que acontece no resto do mundo.
"A situação é extrema e, um ano depois que tudo começou, ainda não temos uma resposta nacional. As unidades de saúde são deixadas à própria sorte, sem protocolos de prevenção, equipamentos de proteção, oxigênio, insumos e remédios", aponta.
"Muitas vidas que perdemos poderiam ter sido salvas se tivéssemos estrutura e organização", completa.
Nascida em Angola e cidadã portuguesa, Lemos é formada em Publicidade e Relações Públicas e fez pós-graduação em Gestão Ambiental, Estudos de Paz e Resolução de Conflitos, Relações Internacionais e Geopolítica.
A especialista entrou para o MSF em 2000 e trabalhou em crises sanitárias e humanitárias em várias partes do mundo, com passagens por Hungria, Libéria, Moçambique, Nigéria, Palestina, Quênia, Sudão, Tanzânia e Zimbábue.
Ela está desde 2017 no Brasil, quando passou a atuar como diretora de comunicação da ONG e foi promovida ao cargo de diretora-executiva a partir de 2018.
Recado que vem de fora
O posicionamento de Lemos está em consonância com um manifesto internacional, que foi assinado pelas altas esferas do MSF.
O texto, divulgado no site e nas mídias sociais da entidade, critica duramente a atuação do governo brasileiro durante a pandemia e classifica a situação no país como uma "catástrofe humanitária".
"Mais de um ano desde o início da epidemia de covid-19 no Brasil, ainda não foi colocada em prática por parte do poder público uma resposta efetiva, centralizada e coordenada à doença. A falta de vontade política de reagir de maneira adequada à emergência sanitária está causando a morte de milhares de brasileiros", escrevem os autores.
Em outro trecho, os líderes da entidade fazem um apelo urgente para que as autoridades nacionais reconheçam a gravidade da crise e organizem uma "resposta centralizada e coordenada".
"O governo federal praticamente se recusou a adotar diretrizes de saúde pública de alcance amplo e com base em evidências científicas, deixando às dedicadas equipes médicas a tarefa de cuidar dos doentes em unidades de terapia intensiva, tendo que improvisar soluções na falta de disponibilidade de leitos", aponta no texto o médico grego Christos Christou, presidente internacional do MSF.
"Isto colocou o Brasil em um estado de luto permanente e o sistema de saúde do país à beira do colapso", completa o especialista.
Mais à frente, a carta critica a politização das medidas preventivas cientificamente comprovadas, como o uso de máscaras e o distanciamento físico.
"Alimentando o ciclo de doença e morte no Brasil está o grande volume de desinformação que circula pelas comunidades do país. Uso de máscaras, distanciamento físico e restrição de movimentos e de atividades não essenciais são rejeitados e politizados".
Christou finaliza pedindo um "recomeço" no enfrentamento da pandemia:
"A recusa em colocar em prática medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas resultou na morte prematura de muitas pessoas. A resposta à pandemia precisa urgentemente de um recomeço, baseado em conhecimentos científicos e bem coordenado, para evitar mais mortes desnecessárias e a destruição de um sistema de saúde conceituado e prestigiado."
Lemos revela que a carta teve uma grande repercussão internacional. "Recebemos ligações e contatos de pessoas de vários países, que se mostraram bastante preocupadas com a situação".
Já no Brasil, não houve nenhuma resposta formal do Ministério da Saúde ou do Governo Federal.
"Já havíamos enviado outros comunicados para o ministério e tentamos reuniões. Mas entendemos que as autoridades devem estar bastante ocupadas neste momento e esperamos que estejam trabalhando para resolver os problemas", diz.
Crise sem precedentes
Lemos, que acompanha de perto o trabalho dos voluntários do MSF e tem a experiência de atuar em outros nove países , diz que não consegue comparar a situação brasileira com outros lugares do planeta.
"A sensação que tenho é que a pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo", avalia.
A diretora relata que a ONG começou a reforçar o enfrentamento da covid-19 no Brasil ainda em abril de 2020, com foco na população de rua, migrantes, refugiados, usuários de drogas, idosos e pessoas privadas de liberdade da cidade de São Paulo.
Em 2021, o trabalho dos voluntários está mais focado na Região Norte, especialmente em Rondônia, Roraima e Amazonas.
"Damos apoio ao Sistema Único de Saúde, o SUS, especialmente em áreas de comunidades indígenas e imigrantes", diz.
Nos últimos meses, um dos focos do trabalho é justamente fomentar o treinamento dos profissionais da saúde que estão na linha de frente.
"Muitos médicos e enfermeiros que atuavam nas Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) tiveram que transformar rapidamente as instalações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Só o fato de ter uma equipe extra ajudando a organizar os fluxos, os protocolos de atendimento e toda essa estrutura, já faz toda a diferença", acredita.
Oportunidades desperdiçadas
Lemos é testemunha ocular de como as informações fazem toda a diferença durante uma crise sanitária.
A diretora lembra que o MSF foi fundado em 1971 na França por um grupo de médicos e jornalistas.
A entidade, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999, sempre entendeu a comunicação como um dos pontos-chave de sua atuação.
Ela se recorda que, durante experiências passadas, as equipes e as instalações da entidade chegaram a ser atacadas pela população local durante surtos e epidemias.
"Em muitos locais, tínhamos que restringir o acesso aos centros de tratamento ou aos funerais, pois a transmissão de doenças infecciosas era dramática", relata.
"Se as pessoas não forem comunicadas e não entenderem a importância daquelas medidas, fica impossível trabalhar durante essas crises", ensina.
E, de acordo com a visão dela, foi justamente isso o que não ocorreu no Brasil durante os últimos meses: sem uma coordenação nacional e com tantas mensagens contraditórias, as pessoas não captaram a real gravidade da covid-19.
"Ainda hoje vemos indivíduos que acreditam e usam cloroquina e ivermectina, como se elas pudessem ter algum efeito contra o coronavírus. As UTIs estão cheias de pacientes que acreditaram no kit covid", observa.
"Enquanto isso, sofremos com a falta de oxigênio, sedativos e outros remédios tão necessários para os casos mais graves", lamenta.
Aprendizados e próximos passos
A diretora do MSF no Brasil espera que as autoridades tenham entendido que a prevenção da covid-19 depende mais de ações comunitárias do que da abertura de novos leitos hospitalares.
"Não se para uma pandemia na UTI, porque os hospitais são sempre o último recurso. Precisamos atuar contra a transmissão de pessoa para pessoa, com restrição da mobilidade e fechamento de todas as atividades não essenciais", sugere.
A especialista também aponta a necessidade de reforçar o uso de máscaras e de criar políticas massivas de testagem e isolamento de casos confirmados.
"Boa parte do mundo já faz isso há tempos e os resultados são claros", atesta.
E os exemplos positivos não vêm apenas de lugares ricos ou desenvolvidos: a diretora do MSF destaca o trabalho feito em nações africanas durante os últimos meses.
"A despeito da subnotificação e da existência de outras doenças infecciosas impactantes, os países da África tiveram governos e políticas muito bem coordenadas, com o fechamento de fronteiras, o incentivo ao uso de máscaras e uma comunicação muito clara com os cidadãos", descreve.
Por fim, Lemos entende que o encerramento da pandemia está necessariamente vinculado à vacinação e aposta que não há solução sem cooperação internacional.
"Nós defendemos, inclusive, a quebra temporária das patentes de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico para que se amplie o acesso a esses recursos", revela.
"Espero que as pessoas entendam que a covid-19 só estará controlada quando houver imunidade global. Enquanto tivermos pessoas desprotegidas, ninguém estará verdadeiramente a salvo", finaliza.
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