Vacinas contra a covid-19: por que Brasil poderia ter reservado doses antes mesmo da aprovação da Anvisa, segundo especialistas
Argumento usado por senadores durante a CPI da Pandemia para justificar a demora na negociação com a Pfizer não faz sentido e vai contra as ações do próprio Governo Federal ao longo dos últimos meses.
A segunda semana de depoimentos na CPI da Covid ficou marcada por diversos esclarecimentos sobre a demora das autoridades brasileiras na compra das vacinas contra a doença.
Num depoimento realizado na quinta-feira (13/05), o gerente-geral da farmacêutica Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, confirmou que o governo de Jair Bolsonaro rejeitou três ofertas de 70 milhões de doses, realizadas pelo laboratório em agosto de 2020.
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Ainda de acordo com o representante da empresa, as primeiras remessas do imunizante poderiam ter sido entregues ao país ainda em dezembro do ano passado, o que permitiria iniciar a campanha de vacinação com cerca de um mês de antecedência (as primeiras doses começaram a ser aplicadas no país em 17 de janeiro de 2021).
Ainda durante a comissão parlamentar, alguns senadores governistas tentaram justificar essa falta de respostas do governo brasileiro na negociação com a Pfizer.
Eles disseram que o Ministério da Saúde não poderia realizar qualquer aquisição de doses que não tivessem sido aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.
Versão governista
O senador Jorginho Mello (PL-SC), por exemplo, afirmou que "o Brasil teve toda boa vontade para comprar" o imunizante, mas que o país não poderia fechar o negócio antes da autorização da agência regulatória ou até que fossem sanados os impedimentos jurídicos.
Para entender melhor o que Mello quis dizer, a reportagem da BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa dele, que orientou a olhar os conteúdos que o senador havia postado em suas redes sociais logo após a sessão de ontem da CPI.
Na legenda de um vídeo postado no Facebook, o representante de Santa Catarina no Senado Federal escreveu:
"No seu depoimento hoje na CPI da Pandemia, o executivo da Pfizer, Carlos Murillo, foi categórico ao afirmar que o governo brasileiro comprou as vacinas assim que a Anvisa deu a autorização, ou seja, quando a vacina já era algo consolidado e não apenas um projeto de vacina."
Vale dizer que essa discussão começou a entrar na pauta e tomar forma no dia anterior: na quarta-feira (12/05), o ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do Governo Federal, Fabio Wajngarten, já havia confirmado que as tratativas da Pfizer com o Brasil ficaram sem respostas por dois meses.
Num trecho de seu depoimento, Wajngarten relatou ter se encontrado com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, após uma ligação telefônica que ele havia feito com Murillo, à época presidente da farmacêutica no Brasil.
Ao atualizá-los sobre o assunto, o ex-chefe da Secom disse que Bolsonaro escreveu num papel a palavra "Anvisa", indicando que a compra estaria condicionada a uma futura liberação da agência regulatória brasileira.
Ações contraditórias
Uma fala do próprio presidente da República, inclusive, tem sido utilizada para explicar a demora nas negociações de compra com a Pfizer.
No dia 9 de novembro de 2020, durante uma transmissão ao vivo pelas redes sociais, Bolsonaro disse que, "passando pelo Ministério da Saúde e sendo certificada pela Anvisa, o Governo Federal vai comprar e disponibilizar [as vacinas]".
Apoiadores do governo têm usado essa eventual necessidade de certificação da Anvisa como uma barreira para a negociação prévia com as farmacêuticas, em especial com a Pfizer.
Mas há um ponto fundamental nessa história: a compra ou a reserva de doses de vacinas não está vinculada necessariamente à aprovação de seu uso em larga escala, na população em geral.
"Esse argumento é totalmente furado. A aprovação da Anvisa não tem nada a ver com as questões contratuais e comerciais", avalia o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo.
Governos do mundo inteiro ? incluindo o do Brasil ? assinaram contratos e fizeram aquisições ainda em 2020, muito antes de os imunizantes concluírem os estudos clínicos e estarem disponíveis.
A epidemiologista Carla Domingues, que foi coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde entre 2011 e 2019, entende que essa justificativa não para em pé.
"O governo assinou o acordo com a AstraZeneca ainda no segundo semestre de 2020 e ia fechar o contrato com o Instituto Butantan para a compra da Coronavac em outubro, se o presidente não tivesse intervindo e desautorizado o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Por que só com a Pfizer teria que aguardar?", questiona.
O também epidemiologista José Cássio de Moraes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, concorda e vai além: num momento de alta demanda por um produto escasso, a reserva de uma potencial vacina era uma questão estratégica.
"O governo dos Estados Unidos não consultou seu órgão regulador, o FDA [Food and Drug Administration], antes de fazer as compras. Eles fizeram os acordos antes de saber se a vacina seria eficaz ou não", analisa.
Movimentação internacional
Uma iniciativa mantida pelo Instituto de Inovação em Saúde Global da Universidade Duke, nos Estados Unidos, nos ajuda a entender melhor o histórico das negociações de países para a compra de doses de vacinas contra a covid-19.
Segundo o registro, a primeira assinatura de contrato do tipo aconteceu em maio de 2020, quando os Estados Unidos reservaram 300 milhões de doses do imunizante AZD1222, desenvolvido por AstraZeneca e Universidade de Oxford.
No mesmo período, o Reino Unido também fechou uma reserva de 90 milhões de doses deste produto.
Detalhe importante: naquele momento, essa e outras vacinas ainda estavam na fase de testes clínicos e demorariam mais alguns meses para ter seus resultados preliminares divulgados.
Outro aspecto relevante é que a aprovação da AZD1222 pelas agências regulatórias nem passava pela cabeça dos governantes ingleses e americanos: ela só foi liberada em caráter emergencial no Reino Unido no dia 30 de dezembro, mais de sete meses após a compra das doses.
E até hoje (14/05), essa vacina ainda não recebeu o sinal verde do FDA para ser usada na população dos Estados Unidos, que utilizaram outros fornecedores (como Pfizer/BioNtech e Moderna) em sua campanha de imunização.
Vale mencionar que esses acordos feitos pelos países traziam uma série de cláusulas e condições.
"Os contratos sempre vinculavam a entrega das doses à aprovação pelas autoridades sanitárias", explica Dourado, que também integra o Institut Droit et Santé da Universidade de Paris, na França.
Ou seja: a compra só seria efetivada mesmo se os candidatos à imunizantes se saíssem bem nos testes clínicos e fossem liberados por Anvisa, FDA e as agências de cada local.
Desigualdade global
Essa corrida para garantir uma fatia da produção vacinal ganhou fôlego durante o segundo semestre de 2020: em julho, os Estados Unidos já tinham firmado acordo com outras três farmacêuticas e, ao menos em tese, já possuíam doses suficientes para cobrir 93% de sua população.
Em agosto, Canadá, União Europeia, Vietnã e Brasil entraram na jogada e garantiram suas primeiras reservas.
No caso brasileiro, o anúncio envolvia 90 milhões de doses da AZD1222 e a transferência de tecnologia para a produção da vacina no Instituto BioManguinhos, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), no Rio de Janeiro.
Nesse mesmo mês de agosto, os Estados Unidos já tinham uma quantidade de imunizantes suficiente para proteger 139% dos americanos ? já sobravam vacinas por lá.
Em 20 de outubro de 2020, o Ministério da Saúde anunciou que tinha negociações avançadas para garantir 46 milhões de doses da Coronavac, que seriam fabricadas no Instituto Butantan.
Mas, um dia depois, Bolsonaro desautorizou o acordo em um post nas redes sociais:
"A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina", escreveu o presidente.
Esse contrato só seria assinado quase dois meses depois, em 30 de dezembro de 2021.
Diversificar os investimentos
Voltando para a situação global, no final de 2020 a disparidade na corrida por imunizantes só aumentou: em dezembro, os contratos assinados pelo governo do Canadá garantiam cerca de 6 doses de vacinas para cada habitante (vale mencionar que a maioria dos produtos requer duas doses para oferecer um bom nível de proteção).
Em outros locais, como Reino Unido e Austrália, esse excedente também era notável, com praticamente quatro vacinas para cada pessoa.
Outro movimento interessante de vários países foi o de firmar acordos com diversos fornecedores diferentes.
Em dezembro de 2020, por exemplo, os Estados Unidos já haviam assinado contratos com AstraZeneca/Oxford, Novavax, Sanofi/GSK, Janssen, Moderna e Pfizer/BioNTech.
O Canadá tinha acertado compras com todas essas empresas e algumas outras, como o laboratório Medicago.
A mesma coisa aconteceu no Reino Unido, na União Europeia, na Austrália, no Japão...
O que essas nações mais ricas fizeram foi a famosa tática de colocar os ovos em mais de uma cesta: afinal, sem saber quais candidatas à vacina seriam realmente efetivas nos testes clínicos de fase 3, a diversificação das apostas evitaria surpresas desagradáveis.
Assim, caso um imunizante não alcançasse uma boa taxa de eficácia ou tivesse algum atraso nos testes clínicos, seria possível contar com outros.
Pode reparar: na lista de contratos americanos, as vacinas de AstraZeneca/Oxford, Novavax e Sanofi/GSK sequer foram utilizadas por lá.
Até o fim de 2020, o Brasil tinha anunciado vínculos com dois fornecedores: AstraZeneca/Oxford/FioCruz (AZD1222) e Sinovac/Instituto Butantan (CoronaVac).
Portanto, caso alguma dessas duas candidatas tivesse ido mal nos testes clínicos e não fosse aprovada pela Anvisa, é possível que a situação de nossa campanha de imunização estivesse ainda mais fragilizada e sem alternativas.
Mais para a frente, já em 2021, o Ministério da Saúde estabeleceu acordos com outras empresas, algumas cujos produtos ainda não receberam o aval da Anvisa, como é o caso da Sputnik V (Instituto Gamaleya) e a Covaxin (Bharat Biotech).
Cláusulas 'draconianas'?
Um segundo argumento usado por governistas para justificar uma demora nas tratativas com a Pfizer seriam alguns detalhes do contrato oferecido pela farmacêutica.
De acordo com o ponto de vista do Governo Federal, algumas cláusulas, classificadas como "draconianas" poderiam isentar o laboratório de qualquer culpa caso acontecessem efeitos colaterais após a vacinação.
O episódio ficou marcado por uma frase de Bolsonaro no dia 18 de dezembro, durante um evento realizado na Bahia:
"Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: nós (a Pfizer) não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso. E, o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas", disse o presidente.
Na avaliação de Dourado, esse medo não faz sentido algum e denota uma certa inexperiência dos gestores públicos com contratos desse tipo.
"Não sabemos detalhes do contrato, até porque isso nunca foi divulgado oficialmente. Mas as cláusulas consideradas abusivas não parecem ter nada de diferente", pontua.
"Fica parecendo que o Pazuello e a equipe do Ministério da Saúde não eram do ramo e não tinham noção com o que estavam lidando", acrescenta.
Outro fator relevante dessa história: a mesma Pfizer fechou contratos com dezenas de outros países, e é difícil imaginar que as cláusulas tenham sido assim tão diferentes a ponto de causar essa celeuma no Brasil.
O advogado sanitarista lembra que o acordo com a Pfizer só andou quando o Congresso aprovou uma emenda que dividia a responsabilidade civil por eventos adversos entre União, estados e municípios.
"Na verdade, nem existia a necessidade dessa mudança na legislação. Quando o Estado compra uma vacina, ela passa a fazer parte das políticas públicas e o governo naturalmente responde por isso", raciocina.
Na interpretação dele e de outros especialistas, mesmo com a possibilidade de um efeito colateral acontecer após a vacinação, o processo jurídico envolvido num caso desses levaria muitos anos e, ainda que envolvesse uma compensação financeira para as vítimas, o valor seria infinitamente menor do que o prejuízo financeiro e social causado pela pandemia e pelo atraso na campanha de imunização contra a covid-19.
"Me parece que o governo não queria comprar vacinas porque achavam que não iriam precisar. Eles acreditaram naquela conversa de imunidade coletiva por contágio e agora estão usando essas justificativas furadas", completa o especialista.
Conjecturas e suposições
Uma possível disponibilidade da vacina da Pfizer já em dezembro de 2020 significaria um início antecipado da campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil.
De acordo com as declarações de Murillo, a farmacêutica poderia entregar ainda no final do ano passado um total de 1,5 milhão de doses ao país.
Isso já permitiria proteger 750 mil brasileiros, uma vez que esse imunizante exige duas aplicações para ter uma boa eficácia.
A título de comparação, esse quantitativo seria suficiente para resguardar, com folgas, os três primeiros grupos prioritários descritos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, do Ministério da Saúde: pessoas com mais de 60 anos institucionalizadas (156.878 indivíduos), pessoas com deficiência institucionalizadas (6.472), povos indígenas vivendo em terras indígenas (413.739).
Vale ressaltar que a vacinação não significa apenas um ganho individual: esses 750 mil contemplados ficariam protegidos do coronavírus, mas também ajudariam a resguardar toda a comunidade ao redor deles.
Com menor risco de serem infectados, eles potencialmente deixariam de levar o vírus para outras pessoas com quem têm contato, quebrando as cadeias de transmissão.
Em outras palavras, mais gente fica protegida por tabela e com menor risco de pegar a covid-19 ou desenvolver as formas graves da doença.
Uma barreira importante, no entanto, são as necessidades de refrigeração do imunizante desenvolvido por Pfizer e BioNTech: ele precisa ser mantido a temperaturas baixíssimas, que exigem equipamentos sofisticados.
"Mas já no ano passado a Pfizer distribuiu contêineres em que as doses podiam ser mantidas por duas semanas", diz Moraes.
"Não digo que essas vacinas pudessem ser usadas em municípios pequenos e afastados, mas elas já poderiam ser aproveitadas em cidades maiores, em hospitais com grande circulação, para já começar a proteger as pessoas", aponta.
O médico acredita que houve uma falta de preparo e de visão estratégica do governo brasileiro.
"E isso fez com que chegássemos à situação de hoje, em que não é fácil conseguir comprar as vacinas", completa.
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