'A gente se esquenta com os cachorros': moradores de rua enfrentam dia mais frio do ano em SP
Três cobertores formam uma manta no chão. Por cima, apenas um cobertor para se cobrir. É assim que Osvaldo Pereira, de 57 anos, se protege das baixas temperaturas nos dias mais frios do ano em São Paulo. Ele dorme com amigos ao lado da igreja Nossa Senhora da Boa Morte, na Sé, marco zero de São Paulo.
A reportagem da BBC News Brasil conversou com diversos moradores de rua que vivem na região para entender como eles enfrentam a temporada de inverno. Nesta semana, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrou 6,3ºC, a temperatura mais baixa dos últimos cinco anos na cidade de São Paulo.
Além das mantas, Osvaldo disse que coloca um papelão no chão antes de dormir sob uma estreita marquise, mas exposto ao vento cortante na madrugada.
"Quando acordo, está tudo molhado. O chão tem muita umidade e se a gente dormir direto nele o frio é maior. Tem pessoas que passam e dão sopa, e a gente vai se aquecendo. Mas, quando está ventando, a gente sofre muito", afirma.
Há mais de 30 anos nas ruas, Claudinei França Cruz, de 52 anos, conta que soube de dois moradores de rua que morreram de frio nesta semana a poucos metros de onde ele dorme. "Eu conhecia um deles. A gente fica com medo", conta sem muitos detalhes.
A Secretaria da Segurança Pública afirmou que não registrou nenhum caso de morte suspeita de frio nesta semana em São Paulo. O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirmou à reportagem que percorreu IMLs, delegacias e também não encontrou nenhum caso de morte suspeita por frio.
No entanto, mesmo sob o risco de ter uma hipotermia e morrer de frio, o companheiro dele de rua, Osvaldo Pereira disse que prefere dormir na rua a pernoitar num abrigo oferecido pela prefeitura.
"Lá (abrigo) é muita treta. Essa molecada de hoje é muito desenfreada e eu evito. Prefiro ficar na calçada porque lá você não dorme direito, é muita bagunça. Molecada folgada que não deixa dormir direito", afirmou.
Banho gelado
O chuveiro é aberto, a contagem regressiva é acionada e, cinco minutos depois, a água gelada despenca sobre a cabeça de quem está tomando banho.
Claudinei da Cruz afirma que um dos momentos mais incômodos durante no inverno é tomar banho. Ele conta que há locais na região onde os moradores de rua conseguem fazer a higiene diária, como o conhecido Chá do Padre, no centro, e as tendas erguidas pela prefeitura.
"No Chá do Padre, eles dão uma senha. Na tenda, tem um tempo de cinco minutos e o chuveiro esfria quando ele acaba", afirmou.
Na rua, ele diz que ameniza o frio bebendo "umas cachaças" e com a ajuda de "umas cobertinhas".
Osvaldo Pereira disse que passou por momentos difíceis, como quando a filha dele morreu, e ele disse ter "se jogado" nas ruas. Desde então, ele prefere ficar sozinho.
Ele conta que tem familiares que moram em Atibaia, no interior de São Paulo.
"Mas não vou ficar na casa dos outros. Eles (irmãos) querem que eu fique lá, mas eu não quero. Sabe por que? Na hora que você entra em casa, no banheiro, já tem gente batendo. Você senta no sofá e ele diz que aquele é o lugar dele. Você tira a privacidade das pessoas e eu não quero dar trabalho pra ninguém", conta chorando.
Ao ser questionado sobre seus sonhos, ele diz que não sabe responder.
"Eu não sei responder essa pergunta. Querer sair dessa situação, todo mundo quer. Estou com as costas todas machucadas porque dói. Olha esse chão duro, mas eu não tenho casa para morar. Vou fazer o quê?".
Mulher no frio
Cobertores, mochilas e sacolas fazem as vezes de travesseiros para Irani Benedita de Araújo, de 59 anos. Vinda do Mato Grosso do Sul há cinco meses, ela divide um espaço de cerca de 2 metros quadrados na praça da Sé com o marido, que morava em Santana de Parnaíba antes de ir para as ruas.
"Estou passando por um momento difícil. Eu morava de aluguel, hoje estou dormindo na rua, procurando uma melhora, um emprego, uma oportunidade. É muito sofrimento, de verdade. É muita friagem e minha idade também não ajuda. O que a gente tem é o que as pessoas doam. Sacos plásticos. Não tem banheiro e eu sendo mulher para mim é mais dificultoso. Preciso de ajuda para sair da rua", conta.
Ela conta que o sonho dela é conseguir uma oportunidade de trabalho para sair das ruas e ser independente.
"Eu cuido de idosos, sei cozinhar, trabalhei em restaurante, mas não tem emprego. Mataram um filho meu, tenho um filho preso e um filho nas drogas. É uma família destruída e eu acabei sem nada e sem ninguém. Se eu ficar muito tempo, não vou resistir às ruas", conta.
Ela conta que não gosta de pedir esmolas, mesmo com a necessidade constante de comprar remédios para tratar de problemas respiratórios e até mesmo doenças mais comuns, como dor de cabeça.
"Meu rosto fica doendo de friagem. Me deu muita dor de cabeça essa noite. Eu queria ter uma casa, uma cama e um travesseiro onde eu pudesse descansar fora desse sofrimento. Eu não sei pedir. Isso é muito humilhante. A gente dá bom dia e os outros viram a cara", relata.
Cães que aquecem
Natália, de 34 anos, e Paula, de 30, são trans e dividem uma barraca com ao menos dez cães na frente da Catedral da Sé. Elas contam à reportagem que não conseguem dormir nas noites mais frias e que se aquecem com o calor gerado pelos cães.
"A pessoa quando está com frio, ela não dorme. A gente passa a noite toda acordada. A gente não morre porque tem os cachorros. A gente dorme com os cachorros. A gente se esquenta com os cachorros. Todos os dias a gente vê alguns morrendo aí, amanhece morto de frio. Falta cobertor para as pessoas. Uma barraca já ajudaria bastante essas pessoas", diz Paula.
Ela conta que escolheram ficar no centro, pois é uma região mais segura, com policiamento e com um sistema de monitoramento com câmeras. Elas dizem que os cães são os melhores amigos delas.
"O cachorro não vê como uma pessoa vê a gente. O cachorro não te julga, não te trapaceira, não te rouba. Ele é a companhia mais segura para você passar a noite na rua", afirma Paula.
Ela sonha em conseguir um emprego, ter uma casa e conquistar autonomia para realizar seus desejos. Ao serem questionadas sobre como foram parar nas ruas, elas dizem que são alvo de preconceito por diversos motivos.
"Deixa eu te explicar. Tem o marginal, não tem? A gente é a margem da margem do marginal. Nós somos pretas, trans e índias. Já tem essa resistência na gente. Aqui no Brasil, a maioria das pessoas são aculturadas com TV e conversa fiada. A música só fala de sacanagem, só traição, e a gente não se enquadra nisso. A gente está na sarjeta, mas prefere ter a consciência tranquila do que estar por aí por dentro e ser forçado a tomar algumas atitudes que não compensam".
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