Na ONU, Bolsonaro tenta vender imagem positiva do país, mas não abandona discurso ideológico
No palco da Assembleia Geral da ONU o presidente brasileiro Jair Bolsonaro buscou atrair investidores internacionais com um discurso que mesclou o estilo diplomático do Itamaraty com menções - mais ou menos longas - a temas caros à sua base eleitoral.
O mandatário brasileiro foi o primeiro chefe de Estado a discursar na 76a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) na manhã desta terça (21/09), na cidade de Nova York.
Entre os pontos de moderação estão a defesa do Código Florestal brasileiro, alvo frequente de críticas pela base do presidente, o reconhecimento de um desafio na questão ambiental e climática, a menção à Convenção antirracismo que o Brasil assinou e o comentário sobre a busca por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, pauta histórica do Itamaraty que havia sido praticamente abandonada nos primeiros dois anos do governo, quando a gestão Bolsonaro se voltou contra organismos multilaterais como a própria ONU.
Numa composição por vezes contraditória, no entanto, o presidente que exaltou a vacinação dos brasileiros também voltou a defender o chamado "tratamento precoce", em referência à hidroxicloroquina e ivermectina, remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19.
Culpou governadores e prefeitos pelos impactos econômicos da pandemia após medidas sanitárias como lockdowns. Voltou a repetir que o Brasil esteve "à beira do socialismo" e citou liberdade de culto e de expressão.
"Bolsonaro agora tenta vender sua narrativa para o mundo embaladinha no formato do Ministério das Relações Exteriores. É claramente uma adequação, tentou exaltar pontos ambientais, o que parece bom, ao mesmo tempo em que inclui um monte de bobagens. Não há muitas surpresas", afirma Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas.
'O emprego verde está no Brasil'
Como o Itamaraty planejava, Bolsonaro reconheceu que o Brasil e o mundo têm um desafio ambiental a lidar. Os diplomatas brasileiros identificaram que o país tem uma crise de imagem internacional decorrente especialmente das políticas para meio ambiente da gestão Bolsonaro.
Para o corpo técnico do governo brasileiro, é preciso enfrentar essa questão com dados concretos de ações e metas do país. Foi o que Bolsonaro buscou fazer.
"O futuro do emprego verde está no Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão, saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo", disse o presidente.
Enquanto em 2019, o próprio filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, apresentou projeto de lei que extinguia a reserva legal, área do imóvel rural que não pode ser desmatada, uma imposição do Código Florestal, agora o próprio Bolsonaro defendeu o arcabouço legislativo brasileiro no discurso.
"Nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa. Nosso Código Florestal deve servir de exemplo para outros países", disse Bolsonaro.
Ele citou o cumprimento da promessa feita na Cúpula do Clima proposta por Joe Biden, em abril, ao dizer que dobrou o orçamento de fiscalização e afirmou que o mês de agosto registrou queda de 32% do desmatamento ilegal em relação ao mesmo período do ano anterior. No acumulado de seu governo, no entanto, os diplomatas reconhecem que o Brasil "tem teto de vidro" no tema.
"Temos tudo o que investidor procura: um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo", afirmou Bolsonaro.
A tentativa, no entanto, pode ter sido insuficiente para alterar a imagem do país. "Ele exaltou a legislação ambiental como se o Ricardo Salles não tivesse ficado dois anos ali desmontando tudo", afirmou Casarões. Salles, ministro do meio ambiente de Bolsonaro até junho, chegou a dizer em uma reunião ministerial, em 2020, que era hora de aproveitar a desatenção da imprensa, por conta da pandemia, para "ir fazendo a boiada passar".
"No tema da Amazônia, Bolsonaro parecia um pouco menos comprometido e mais defensivo do que na cúpula do clima da Casa Branca em abril. Ele provavelmente não perdeu nenhum aliado, mas também não ganhou nenhum. Não acho que os investidores ouviram nada naquele discurso que os faça mudar de ideia e se apressar em investir em projetos verdes no Brasil. A maioria está em compasso de espera para ver o que acontecerá em 2022", afirmou à BBC News Brasil o brasilianista Brian Winter, editor-chefe da publicação americana Americas Quartely.
Bolsonaro tentou ainda assegurar aos investidores que o país está comprometido com direitos humanos e de minorias. Em 2019, o presidente chegou a responsabilizar os indígenas pelos incêndios na Amazônia no palco da ONU. "600 mil índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades", disse o presidente, sem citar, como havia prometido, o marco temporal, que pode limitar demarcações. Ele também afirmou ter ratificado a Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância.
"Os investidores não serão ludibriados por afirmações do discurso de que o Brasil teria uma forte legislação ambiental e respeito aos direitos socioambientais quando ao mesmo tempo o governo está tentando aprovar no Congresso leis para dificultar a demarcação de terras indígenas e enfraquecer as regras de licenciamento ambiental", afirmou Camila Asano, diretora de programas da Conectas, ONG que monitora os temas, em relação a medidas como o marco temporal, que está sendo analisado tanto no Supremo Tribunal Federal como no Congresso, ou o projeto de lei que regulariza a posse de terras ilegalmente desmatadas.
Passaporte de vacina, tratamento precoce, socialismo
Bolsonaro, no entanto, frustrou o Itamaraty ao não anunciar a doação de vacinas contra a covid-19 que o Brasil pretende fazer a países da América Latina com escassez de doses e ocupou menos tempo de sua fala com imunizantes, grande tema da Assembleia, do que defendendo o chamado "tratamento precoce", com drogas sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus como hidroxicloroquina e ivermectina, que ele não citou nominalmente. O assunto é caro à base eleitoral do presidente, que em parte chega a recusar a imunização. O próprio Bolsonaro afirma não ter se vacinado.
"Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label. Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial", afirmou o presidente. Estudos com hidroxicloroquina foram paralisados ainda no início da pandemia depois que os dados científicos apontaram sua ineficácia e o risco de efeitos colaterais. E em agosto de 2021, a agência reguladora de medicamentos e alimentos dos EUA, a FDA, foi explícita em contra-indicar o uso de ivermectina, que pode gerar danos letais.
"Você não é um cavalo. Você não é uma vaca. Sério, pessoal, parem com isso", afirmou a FDA em postagem nas redes socais junto com o informativo intitulado: "Por que você não deve usar ivermectina para tratar ou prevenir Covid-19".
Bolsonaro também se posicionou contra "o passaporte da vacina", documento que comprova a imunização e permite a entrada de pessoas a países ou locais públicos. Nesta segunda, os EUA anunciaram que revogariam restrição a viajantes oriundos do Brasil, em vigor há um ano e meio, desde que eles comprovassem estar vacinados. A medida foi comemorada pelo Itamaraty mas não pelo presidente até agora.
Ao citar o passaporte, o brasileiro ainda chamou a atenção para o constrangimento em relação à própria condição do mandatário brasileiro, único líder do G-20 a afirmar não estar vacinado. Na avaliação de um alto funcionário do Itamaraty, o presidente "deu ênfase positiva aos temas de saúde, meio ambiente e economia e fez gestões para a base - defesa da família e "tratamento inicial". Usou boa parte de nossas sugestões, com um molho pessoal. Afinal, quem decide é ele".
Bolsonaro optou ainda por abrir seu discurso com uma série de frases de ataque a alvos tradicionais do bolsonarismo, como a imprensa e o socialismo. "Venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões", disse ele e mais adiante continuou: "O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição, valoriza a família e deve lealdade a seu povo. Isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo".
O discurso original, disponibilizado pela secretaria de comunicação, previa que Bolsonaro diria que "respeita a constituição e seus militares", mas o presidente suprimiu o termo "e seus militares" ao discursar. Ele também afirmou que em sete de setembro, "milhões de brasileiros" foram às ruas "na maior manifestação de nossa história (para) mostrar que não abrem mão da democracia".
Nenhuma estimativa oficial de público contabilizou mais do que centenas de milhares de manifestantes. O ato foi considerado um ataque a instituições democráticas de Bolsonaro pela imprensa internacional. Ao mencionar o assunto, Bolsonaro reafirmou o termo democracia.
Ele ainda disse que "estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção", apesar das investigações sobre desvios de verba pública dos gabinetes de seus dois filhos, Flávio e Carlos Bolsonaro, e das apurações da CPI da Covid, no Senado, que apontam irregularidades em negociações na compra de vacinas dentro do Ministério da Saúde.
Por fim, defendeu brevemente a liberdade de culto e encerrou sua fala "com um Deus abençõe a todos".
O discurso adotou um tom de balanço no momento em que se aproximam os mil dias da gestão Bolsonaro. Para o brasilianista Brian Winter, "o discurso acabou sendo uma oportunidade perdida para Bolsonaro, já que foi quase inteiramente escrito para consumo doméstico e adicionou partes pouco inteligíveis para o observador internacional".
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