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O escândalo que levou uma cidade dos EUA a beber água com chumbo

O rio Flint em Flint, no Michigan (EUA), cuja água está contaminada com chumbo - Paul Sancya/AP
O rio Flint em Flint, no Michigan (EUA), cuja água está contaminada com chumbo Imagem: Paul Sancya/AP

Spencer Kimball

22/01/2016 15h58

Flint, berço da GM, não luta só contra o desemprego, a pobreza e a criminalidade. Irresponsabilidade de autoridades preocupadas em economizar fez a população beber água contaminada com chumbo por mais de um ano.

A democracia foi, na prática, suspensa em Flint. Diante de um deficit de US$ 15 milhões, a cidade foi posta sob intervenção emergencial pelo governo do Estado de Michigan em 2011. Uma série de gestores não eleitos foram nomeados pelo governador Rick Snyder para tomar decisões fiscais em Flint.

Em abril de 2014, o gestor decidiu que a cidade poderia economizar no abastecimento de água. Em vez de recorrer à vizinha Detroit, acreditou-se que Flint poderia economizar cerca de US$ 20 milhões, ao longo de oito anos, bombeando água diretamente dos Grandes Lagos, o maior depósito de água doce do mundo. A construção dos novos dutos deveria durar mais de dois anos.

Em vez de se contentar com Detroit durante o período de transição, decidiu-se usar a água do rio Flint como fonte de abastecimento até que a nova tubulação ficasse pronta. Não levou muito tempo para Melissa Mays e outros residentes de Flint notarem que alguma coisa estava errada com a água que bebiam. "Meus filhos e meu marido, todos nós cinco começamos a apresentar erupções nos rostos, nas costas e nos braços", contou Mays à DW. "Nosso cabelo passou a cair aos montes."

Chumbo na água

As autoridades locais e estaduais minimizaram as crescentes preocupações dos moradores de Flint e sustentaram que a água do rio era própria para consumo. Mas isso não convenceu Mays, de 37 anos. Em janeiro de 2015, ela e seu marido, Michael, fundaram o grupo de ativistas Water You Fighting For (Água pela qual você luta), para aumentar a conscientização sobre o problema da água em Flint. "Sabemos que ela está historicamente contaminada", afirmou Mays. "A GM jogou seus despejos lá durante um século e nunca limpou (...) porque declarou falência", disse Mays.

Em fevereiro, uma análise detectou altos níveis de chumbo na água da torneira da casa de Lee Anne Walters, uma residente de Flint. Posteriormente, os médicos diagnosticaram envenenamento por chumbo no filho dela. Em seguida, a Câmara Municipal aprovou por sete votos a um para que se retornasse à rede de abastecimento de Detroit.

Mas Flint estava sob estado de emergência decretado pelo Estado de Michigan, e a Câmara era impotente. O gestor de emergência, Jerry Ambrose, rejeitou a votação, chamando-a de incompreensível devido aos altos custos que o retorno ao abastecimento via Detroit provocaria. "Quando você se encontra em estado de emergência, os cidadãos não contam", afirmou Mays. "Eles põem os lucros à frente das pessoas, suspendem a democracia para resolver um problema de custos."

Em setembro, uma pesquisa da Universidade Politécnica da Virgínia constatou que "Flint tem um sério problema de chumbo na água", depois de examinar 252 amostras enviadas pelos residentes. E quando a pediatra Mona Hanna-Attisha examinou os registros do hospital da cidade, ela encontrou níveis elevados de chumbo no sangue de crianças de Flint. A exposição ao chumbo pode causar problemas neurológicos nas crianças.

Em outubro, as autoridades finalmente reagiram. Flint emitiu um alerta de chumbo, e o condado de Genesee declarou emergência na saúde pública. O governador anunciou o retorno ao sistema de abastecimento de Detroit. Um mês mais tarde, Mays entrou com uma queixa coletiva contra o governador e várias autoridades, estaduais e municipais. A ação os acusa de não adicionar um agente anticorrosivo à água. Como consequência, a água poluída do rio Flint reagiu com as antigas tubulações de chumbo da cidade, liberando o metal.

Nesta quinta-feira (21), o presidente Barack Obama aprovou uma ajuda federal de US$ 80 milhões para ajudar a consertar as tubulações. E a EPA (Agência de Proteção Ambiental, na sigla em inglês) ordenou uma revisão independente dos fatos e anunciou que vai realizar exames próprios na água da cidade.

"Isso é um lembrete de por que não se pode economizar em serviços básicos oferecidos à população, e de que devemos agir juntos, como governo, para garantir a saúde pública e a segurança", afirmou Obama em Detroit.

"Arrogância de governos obcecados por economizar"

A crise da água em Flint é o ápice de mais de meio século de desindustrialização, evasão populacional e fuga de investimentos, explica Andrew Highsmith, autor de Demolition Means Progress (Demolição significa progresso), que narra a história de Flint. A cidade foi colocada sob um gestão de emergência em 2011 devido a problemas fiscais causados em parte por grandes obrigações previdenciárias. Estas, por sua vez, foram um legado de dias melhores na cidade de Michigan.

A GM foi fundada em Flint, que foi o lar de cerca de 80 mil trabalhadores da indústria automobilística na década de 1950. Na época, a renda per capita da cidade era uma das maiores dos EUA. Mas a General Motors passou a transferir as fábricas, primeiro para os subúrbios, em seguida para outras partes dos EUA, por fim para outros países. Flint perdeu uma importante fonte de tributos. Hoje, a GM emprega por volta de 10 mil pessoas na área da cidade.

Encorajados por subsídios federais, muitos moradores brancos se mudaram para os subúrbios. Os residentes negros, que não tiveram acesso aos mesmos benefícios, permaneceram na cidade. A população de Flint caiu de 200 mil para 100 mil pessoas. 40% dos habitantes da cidade vivem abaixo da linha de pobreza, e Flint tem uma das mais altas taxas de crimes violentos nos EUA.

Highsmith afirma que as autoridades estaduais, determinadas a economizar dinheiro numa cidade economicamente abalada, deixaram de lado as preocupações dos moradores e os alertas dos especialistas.

"Esse caso é um exemplo da arrogância de autoridades públicas obcecadas por ganhos fiscais e que agem de acordo com uma mentalidade de iniciativa privada diante de orçamentos públicos. Quando isso acontece, a opinião de especialistas é frequentemente marginalizada", comenta Highsmith. "O foco primordial na redução de custos e na austeridade econômica cria uma espécie de névoa na qual ciência e tecnologia são negligenciadas", afirma.