Turistas acusam estação de esqui na Áustria de ocultar riscos de contágio
O tempo nos Alpes tiroleses estava ameno e ensolarado no início de março, e havia muita neve. Turistas de toda a Europa -- Alemanha, Reino Unido, Países Baixos, Noruega, Suécia e Islândia -- iam até lá para esquiar e curtir as festas pós-esqui.
Os negócios estavam indo melhor do que no ano anterior. As empresas de turismo tentaram atrair à região justamente aqueles turistas que temiam o surto do coronavírus Sars-Cov-2 no norte da Itália.
A alemã Martina Büchling, de 51 anos, não tinha consciência do perigo quando viajou da Alemanha para a Áustria com o marido e as duas filhas. Ela chegou à popular estação de esqui de Ischgl, no Tirol austríaco, no dia 8 de março.
Duas semanas antes, o Grand Hotel Europa, em Innsbruck, a capital do estado do Tirol, havia sido fechado temporariamente após um funcionário italiano da recepção ter testado positivo para o novo coronavírus. O fato fora apresentado como "caso isolado", e não se falou mais sobre o vírus.
Büchling diz que ela e a família não haviam ouvido ou lido nada sobre a presença do novo coronavírus no Vale de Paznaun, onde fica Ischgl. "Senão não teríamos ido", diz.
No ar está a acusação de que as autoridades austríacas teriam encoberto os riscos. Mesmo que muitos detalhes ainda não sejam conhecidos, uma coisa já está clara: já em janeiro e fevereiro a imprensa britânica e de outros países europeus relatara casos de infecção por coronavírus no Tirol.
No dia 1º de março, autoridades da Islândia emitiram uma advertência no site de alertas antecipados da Comissão Europeia, depois que 15 turistas que haviam visitado Ischgl retornaram das férias infectados pelo novo coronavírus. Quatro dias depois, o governo em Reykjavik declarou Ischgl "área de risco".
Innsbruck reagiu com a alegação de que os turistas teriam contraído o vírus durante a viagem de volta para casa. As festas pós-esqui em Ischgl continuaram.
No dia 7, um barman do popular bar Kitzloch, em Ischgl, também testou positivo para o coronavírus. As autoridades sanitárias estaduais do Tirol declararam que "uma contaminação por coronavírus dos clientes do bar é improvável do ponto de vista médico".
Três dias depois do diagnóstico do barman, Büchling dividiu uma gôndola de esqui com uma jovem que reclamou que o Kitzloch havia sido fechado. Quando voltou ao hotel, a alemã se espantou ao ver os bares da cidade fechados, enquanto os restaurantes ainda vendiam comida. Ela se perguntou porque uma placa diante do teleférico pedia que as pessoas mantivessem distância umas das outras, sem que ninguém cumprisse a recomendação.
Finalmente, na noite do dia 13 de março, o dono do hotel expulsou a família de forma completamente inesperada. As autoridades haviam decidido fechar a estância de esqui no dia seguinte - a quarentena havia sido imposta em Ischgl e em todo o Vale do Paznaun.
Assim como milhares de outros turistas perplexos que haviam sido expulsos de seus alojamentos repentinamente, a família Büchling deixou o ressort -- a quarentena, afinal, excluía os turistas, que poderiam retornar para casa. Eles dirigiram a noite inteira até chegar à sua residência, nos arredores de Frankfurt.
Dois dias depois começou a febre. Martina Büchling ficou muito doente, teve tosse seca, dores musculares e a sensação de ter "cacos de vidro nos pulmões". Ela perdeu o olfato e o paladar. Foram "duas semanas no inferno", relata, com "pânico de morrer". Agora está melhorando -- mas a raiva cresce.
Economia e política
Martina Büchling é uma das 4 mil turistas -- 70% deles alemães -- que querem participar de uma ação coletiva da associação austríaca de proteção ao consumidor VSV. Ela está convencida de que as autoridades sabiam dos riscos muito antes de os fatos serem divulgados.
O diretor da VSV, Peter Kolba, apresentou queixa criminal ao Ministério Público. Segundo ele, as autoridades do Tirol sabiam -- ou tinham que saber - "de um perigo de contaminação em massa" e mantiveram os locais de esqui abertos mesmo assim. O Ministério Público agora precisa apurar se a acusação tem fundamento e se vai resultar em indenizações para pacientes infectados.
Kolba avalia que houve motivações financeiras e políticas para adiar o fim da temporada de esqui. "Os motivos econômicos são óbvios, basta perguntar quanto lucro dá um único dia na temporada em Ischgl. É possível imaginar que se diga 'ok, vamos continuar por mais dois dias'".
O turismo é uma fonte de renda fundamental para o Tirol. O setor concentra um quarto de todos os postos de trabalho do estado. Kolba aponta para as estreitas relações entre a indústria do turismo -- especialmente as poderosas sociedades de teleféricos -- e a legenda conservadora Partido Popular Austríaco (ÖVP). O ÖVP governa -- numa coalizão com o Partido Verde - tanto o estado do Tirol quanto o país, sob a batuta do premiê Sebastian Kurz.
Uma semana antes de o funcionário do hotel em Innsbruck ser diagnosticado com infecção pelo coronavírus, Kurz se encontrou a portas fechadas com membros do chamado "Círculo das Águias" (Adlerrunde), que inclui representantes das maiores empresas do Tirol. Entre elas estão operadoras de teleféricos, donos de hotéis e construtoras. Juntas, as companhias doaram um total de 1 milhão de euros ao ÖVP.
Pouco depois desse encontro houve uma eleição para os cargos da Câmara Econômica da Áustria, a representação legal dos interesses de todas as empresas austríacas. Um dos principais candidatos no Tirol era Franz Hörl, um lobista hoteleiro e de teleféricos, deputado do ÖVP em Viena e presidente estadual da Federação Econômica do Tirol, a representação do ÖVP na câmara econômica. A Federação Econômica do Tirol lucra 13 milhões de euros anuais com tarifas pagas pelos membros do setor do turismo.
Cerca de um terço dos eleitores de Hörl depende do turismo. Por isso, uma troca de mensagens entre Hörl e o dono do bar Kitzloch, no dia 9 de março, vem chamando a atenção da opinião pública. Hörl insiste que o bar seja fechado para evitar um final antecipado da temporada de esqui -- uma situação que significaria sérios prejuízos financeiros para seus apoiadores.
Mesmo quando o número de infecções pelo coronavírus começou a subir no Tirol, o secretário estadual da Saúde, Bernhard Tilg (ÖVP), foi à televisão para dizer que "as autoridades fizeram tudo certo."
O governador do Tirol, Günther Platter, enxerga a situação de forma similar, respondendo à DW que muitos países passam por "uma situação de exceção" que "era inimaginável há poucas semanas". Por outro lado, ele admite que, "com o conhecimento que temos hoje, as autoridades provavelmente teriam tomado algumas decisões diferentes". Platter nega "completamente" que a eleição para a Câmara Econômica no início de março teria influenciado a continuidade da temporada de esqui no Vale de Paznaun.
Kolba afirma que nem o governo do Tirol nem o Ministério Público daquele estado vão levar a sério as acusações.
Para Büchling resta o consolo de que, "pelo menos, não contagiei ninguém".
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