Por que convenção sobre sequestro internacional de crianças é alvo de questionamentos

Por que convenção sobre sequestro internacional de crianças é alvo de questionamentos - Alvo de ação julgada pelo STF, tratado de 1980 estaria separando milhares de mães e filhos sem avaliar o contexto das crianças e sendo usado como instrumento para discriminação de gênero.Todos os anos, mais de 2.500 crianças e adolescentes com dupla nacionalidade mundo afora são consideradas vítimas de subtração internacional de menores, prática popularmente chamada de sequestro internacional, quando viajam ou se mudam para o exterior com um dos pais sem a permissão do outro.

Nesses casos, em 103 países signatários é possível recorrer à Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, de 1980, (CH80) para localizar e reaver os filhos mais rapidamente. O tratado, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 3.413/2000, estabelece procedimentos para assegurar o retorno imediato de crianças e adolescentes menores de 16 anos transferidos ilegalmente para um dos países que assinam o documento ou retidos neles de forma indevida.

Nos últimos anos, porém, tal instrumento tem gerado problemas à medida que cresce o número de mulheres estrangeiras acusadas de "sequestrar" os próprios filhos, mesmo sendo as responsáveis pela guarda das crianças. Estima-se que ao menos 15 mil mães tenham sido denunciadas na última década.

No Brasil, há "196 casos de subtração internacional abertos" no momento, informou o Ministério da Justiça à DW. Em 2021, por exemplo, 80% dos processos envolviam mães.

Em setembro de 2023, três relatorias especiais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) alertaram sobre a "discriminação de gênero", apontando que "três quartos dos casos se referem a mulheres".

Em 2022, uma sentença do Comitê de Direitos da Criança da ONU concluiu que o Artigo 11 da Convenção sobre os Direitos da Criança condena a subtração internacional de menores, mas que exceções devem ser analisadas caso a caso.

No Brasil, o instrumento foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que solicita ao STF verificar se uma lei ou norma é constitucional, sobre a Convenção da Haia foi protocolada em 2009 e esperou 15 anos para chegar ao plenário.

A dias da continuidade do julgamento marcada para esta quarta-feira (07/08), no entanto, uma nova ADI relâmpago sobre o mesmo tema foi anexada às pressas, adiando a sessão. Ainda não há previsão de retomada.

Ambas as ADIs denunciam que o tratado viola direitos consagrados pela Constituição Federal, separando mães e filhos à força sem avaliar o contexto de cada caso e as exceções previstas na Convenção da Haia.

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Paralelamente, sem grande alarde, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou, em 24 de maio, uma portaria com regras inéditas, um dia após a abertura do julgamento da ADI no STF. Pela primeira vez, o governo federal definiu procedimentos claros para a execução da Convenção da Haia, a começar pela admissão dos pedidos de repatriação das crianças a cargo da Autoridade Central da Administração Federal (ACAF) no Ministério da Justiça. Segundo o documento, as novas diretrizes estão em vigor desde 3 de junho.

Em entrevista à DW, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sérgio Kukina se disse preocupado com a chamada "devolução automática", que, segundo ele, não "protege os menores de maneira integral", como guiam a Constituição brasileira e a Convenção da ONU.

O magistrado dedicou a carreira especialmente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e observa que o texto da Convenção da Haia permite interpretações divergentes sob um imediatismo problemático. "A celeridade deve ser o propósito final, e não o ponto de partida", defende.

Governo encampa bandeira das mães

Com argumentos atualizados, a nova ADI traz os direitos humanos ao debate e pede ao STF um posicionamento sobre a violência doméstica. A impulsora da ação, deputada federal Professora Luciene Cavalcante (PSOL-SP), disse à DW que há um "impasse de interpretação" na Justiça, com uma linha "conservadora e discriminatória" que "nega a violência contra as mulheres" e viola "outros tratados internacionais que o Brasil também é obrigado a cumprir", conforme o Artigo 4º da Constituição.

Nesse sentido, o governo brasileiro passou a levantar a bandeira mais reivindicada pela defesa das mães envolvidas em processos de sequestro internacional: a de reconhecer a violência doméstica dentro da exceção para o retorno das crianças. Trata-se do item da Convenção da Haia sobre o "grave risco" de sofrer danos ou uma "situação intolerável" no país de origem.

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Até agora, apenas Austrália, México e Colômbia haviam se manifestado sobre o tema – e mesmo assim de forma bastante discreta, a nível interno. O Brasil, abordou o assunto no primeiro fórum oficial sobre violência doméstica e Convenção da Haia, realizado na África do Sul em junho. A próxima edição do evento deve ocorrer no Brasil.

Filho entregue a pai canadense

Embora o procurador-geral da República, Paulo Gonet, tenha defendido no plenário do STF, em 23 de maio, que "a experiência brasileira com a Convenção é proveitosa, tanto na devolução criteriosa de crianças retidas ilicitamente no Brasil, quanto no retorno de crianças retiradas do Brasil e enviadas ao exterior", não é isso o que mostram os dados fornecidos pelo Brasil à Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, para a oitava revisão geral do tratado, concluída em outubro de 2023.

O documento, de responsabilidade da ACAF, relata casos de danos irreparáveis para os menores "devolvidos", entre outros problemas. Um exemplo se refere ao caso da paulista Carolina Gouveia, que está no Canadá à espera de asilo, vivendo de favor, sem documentos nem direitos, enquanto luta pelo filho Chris desde 2021.

A Justiça brasileira determinou que ali era a "residência habitual" da criança que, segundo a mãe, só havia nascido no país, onde nem os pais tinham visto para morar. Chris foi entregue aos três anos ao pai libanês e à madrasta canadense, que jamais havia visto e cujo idioma não entendia, para morar na província de British Columbia, em 2021.

Gouveia afirma que seguiu o conselho de um defensor público do Canadá que desconhecia a Convenção da Haia tanto quanto ela. Em 2018, com o filho de 4 meses, voltou ao Brasil, onde descobriu que havia violado um tratado internacional.

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Em nenhuma instância judicial dos processos, tanto de restituição, no Brasil, como de guarda, no Canadá, foram aceitas as provas de violência que sofria, entre elas, a confissão do próprio genitor de agredi-la quando estava grávida.

A oitava revisão da CH80 reforçou o papel das Autoridades Centrais em tramitar e garantir acesso e visitas às crianças, o que não ocorre no Brasil depois que são enviadas ao país de origem. Atualmente, não há nenhuma garantia ou controle sobre o que sucede com os menores após a restituição, outra das grandes polêmicas do tratado.

A própria ACAF admite que orienta as mães a buscar advogado diretamente no país estrangeiro, alegando que a comunicação com algumas autoridades centrais não flui, às vezes nem mesmo em pedidos de repatriação.

Fuga da Irlanda para a Bélgica

Outro caso impactante é o da carioca Raquel Cantarelli, denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), contou à DW a coordenadora de Assistência Jurídica Internacional da Defensoria Pública da União (DPU), Daniela Brauner. As filhas da carioca foram levadas, aos prantos, pela Polícia Federal, em junho de 2023. O episódio teve grande repercussão na imprensa e se tornou emblemático.

Com base na Convenção da Haia, as irmãs, de 5 e 7 anos, foram entregues ao pai irlandês, após viverem no Brasil por quatro anos com o aval da Justiça brasileira, que reconheceu, em primeira instância, a "situação intolerável" para as meninas na Irlanda.

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Cantarelli acusa o ex-marido de abusar sexualmente das filhas e de mantê-las em cárcere privado, inclusive com denúncias registradas. A carioca fugiu com as crianças para a Bélgica, onde conseguiu emitir documentos que as permitiram deixar a Europa rumo ao Rio de Janeiro.

Desde que foram levadas pela PF, a mãe não tem contato com as filhas nem informação sobre elas. A reportagem entrou em contato com a autoridade central irlandesa, mas não obteve resposta. Ir à Irlanda não é uma opção, já que uma ordem de prisão aguarda Cantarelli no país, onde a subtração internacional de menores está criminalizada.

AGU: algoz de mães?

Em entrevista à DW, o procurador nacional de Assuntos Internacionais da União, Boni de Moraes Soares, se mostrou otimista com a nova postura do país para reconhecer o impacto da violência doméstica na realidade da subtração internacional de menores. "Perceber o dilema é um avanço", refletiu. "Na metade dos casos que passam pela Advocacia-Geral da União (AGU) há alegação de violência", disse.

As maiores polêmicas sobre a aplicação da CH80 no Brasil envolvem a participação da AGU nos processos judiciais. Nos últimos 20 anos, os advogados do Estado brasileiro atuaram para devolver crianças (ao pai no exterior em pelo menos 80% dos casos) e se converteram em algozes de centenas de mães, como Gouveia e Cantarelli.

De acordo com Soares, a instituição passou por um aprendizado ao longo desses anos e, agora, mobiliza o tema da violência doméstica em articulação com os Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e das Mulheres. Algumas iniciativas já estão em curso, garantiu. Por exemplo: todos os Consulados brasileiros estão orientados a registrar consultas de mulheres que buscam ajuda. "O maior desafio é provar a violência doméstica", afirmou o procurador.

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Nem tudo está mal

Apesar dos problemas, a Convenção da Haia segue sendo um mecanismo importante na segurança de crianças e adolescentes. "Ruim com ela, pior sem ela", defende Soares.

Brauner concorda. Para a defensora pública federal, nem todas as subtrações são justificáveis. Em 2021, por exemplo, a Defensoria Pública da União (DPU) conseguiu trazer de volta da Alemanha a filha de uma mãe brasileira, com quem havia perdido contato depois que a menina foi morar com o pai no país europeu. Apesar de ter autorizado a viagem, o contato não poderia ter sido interrompido.

Sem saber o paradeiro da filha, a mãe procurou a DPU, que conseguiu revogar a autorização para solicitar o retorno através da Convenção da Haia. Sem o tratado, seria como "procurar agulha no palheiro", explica Brauner. "Hoje elas estão juntas", completa. Autor: Patrícia Álvares

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