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Crise provocada pela Covid-19 reabilita ideias controversas para salvar economia mundial

24/06/2020 14h29

A Covid-19 deve embaralhar as cartas do jogo do sistema financeiro internacional. O ineditismo desta crise, que muitos comparam à Grande Depressão da década de 1930, ou aos efeitos da Segunda Guerra Mundial, está obrigando economistas e governos a rever conceitos. Ideias que, pouco tempo atrás, seriam consideradas controversas, ou ultrapassadas, voltam a circular nos meios acadêmicos e até mesmo entre especialistas tidos como ortodoxos.

Vivian Oswald, correspondente da RFI em Londres

O mundo tem pressa. Busca alternativas para retomar a atividade econômica, enquanto as novas contaminações diárias pelo vírus continuam a bater recordes.

O economista Jim O'Neill, que hoje é presidente da Chatham House, um dos think-tanks mais prestigiados da Europa, fala em mais inflação. Em outros tempos, sugestão semelhante causaria calafrios aos mercados. Mas até eles têm dado sinais de condescendência. Sabem que o momento exigirá certos malabarismos. Temas que pareciam pacificados, como este, passam a constar do leque de opções em seminários e reuniões mundo afora.

O'Neill vem defendendo que o Reino Unido deixe de usar o regime de metas de inflação (cujo centro é de 2% ao ano) e mire no chamado Produto Interno Bruto (PIB) nominal. Ele afirma não se surpreender se isso estiver sendo considerado pelo governo britânico neste momento. O conceito é diferente daquele utilizado hoje pela maioria das nações para medir o crescimento econômico, porque não desconta do valor do PIB os efeitos da inflação. Ou seja, tolera o aumento de preços.

"A mudança sempre foi rejeitada. A hora é essa. Se o risco de inflação mais alta for o nosso maior problema, acho até bom, dada a escala das perdas econômicas e da ameaça de deflação nos países", disse O'Neill durante seminário organizado pela Chatham House.

Ex-secretário comercial do Tesouro britânico em 2015, O'Neill criou, há quase duas décadas, o acrônimo BRIC (que incluía os países que liderariam o crescimento do Planeta a partir de 2030: Brasil, Rússia, Índia e China), enquanto ainda trabalhava no mercado financeiro, como economista-chefe do banco Goldman Sachs. Mais tarde o grupo viraria BRICS com o acréscimo do S de South Africa (África do Sul, em inglês).

Onda de austeridade ficou par atrás

Catedrática da University College London e conselheira internacional do China Investment Corporation e membro do conselho do Rock Creek Global, a economista De Anne Julius, diz que não se deve ter medo de um pouco de inflação. Mesmo assim, admite que ficaria nervosa com um ajuste da meta britânica de 2% para 4%, por exemplo. No Brasil, o centro da meta hoje é de 4%. 

Líderes mundiais falam em salvar economias "custe o que custar", expressão usada pelo ministro das Finanças britânico, Rishi Sunak, logo após o início da pandemia. Bancos centrais têm sido demandados a imprimir dinheiro para financiar os gastos adicionais dos governos. Cogitada em tempos de guerra, essa é outra medida que costumava causar apreensão.

A onda da austeridade que varreu o globo nas últimas décadas começa a perder a força. Toma o seu lugar uma espécie de consenso sobre o fato de que as dívidas públicas darão um salto e que governos terão de aprender a lidar com isso pelos próximos anos.

Até pouco tempo atrás, a queda de braço entre os integrantes da União Europeia (UE) sobre a obrigação de respeitar o compromisso de conter as contas públicas era assunto de primeira página nos jornais. Se os gastos nacionais superassem a arrecadação acima do limite determinado pela lei, era preciso pedir autorização formal à Comissão Europeia para descumprir a meta.

Tudo indica que até a rigorosa Alemanha rendeu-se aos novos tempos. Desde a Covid-19, a regra do "déficit zero" já não parece intocável como antes. É o que indicam as reuniões semanais realizadas por Zoom em que integrantes do governo e da academia discutem o futuro.

No Reino Unido, a defesa da heterodoxia é o novo mantra do governo do partido conservador, o mesmo que nas últimas décadas agarrou-se à bandeira da austeridade fiscal. O recado de Sunak é claro: o momento exige "ousadia", e "não ideologia ou ortodoxia".

Prova disso está em ações sem precedentes, como o pagamento de 80% dos salários dos trabalhadores afastados do mercado, ou nos pacotes de mais de 500 bilhões de libras (cerca de R$ 3,3 trilhões) para reaquecer a economia.

Até a Igreja Anglicana entrou no debate. Em entrevista à televisão, o Arcebispo da Cantuária, Justin Welby, salientou que a austeridade fiscal não é resposta para a crise, porque prejudica os mais pobres e agrava desigualdades. Nos Estados Unidos, os estímulos do governo já chegam a US$ 1 trilhão (pouco mais de R$ 5 trilhões).

O "novo normal" aponta para um novo jeito de se falar de economia. Outros valores serão postos na balança, afirma Wendy Carlin, economista da University College London, em artigo publicado no jornal britânico Financial Times. A dimensão humana tornou-se mais visível. Acredita-se que a recuperação deva alcançar o maior número possível de pessoas. Aquelas que foram historicamente deixadas para trás são muitas, o que a crise tratou de evidenciar. Governos agora defendem que as empresas socorridas durante a crise financeira de 2008 têm um papel a desempenhar agora. 

Estado ganha peso

A figura do Estado em quase todos os países será bem maior no que diz respeito a gastos e alcance, segundo Abhimay Muthoo, professor de Economia e reitor da Universidade de Warwick. Segundo ele, a pandemia mudou os valores das pessoas. Tudo agora, destaca, vai depender do tipo de sociedade que se quer criar.

"Nada é sagrado. E nada deve ser sagrado. Se não agora, quando? É claro que tudo deve ser feito de maneira sensata. As novas políticas vão percorrer mares nunca antes navegados. Vão pensar novas estruturas", afirma Muthoo. 

Para o professor, a mudança no debate será tal que até o que se ensina nas escolas e universidades deve mudar.

"Os seres humanos não gostam de mudança. Mesmo os acadêmicos, que estão sempre estudando coisas novas, tendem a ser conservadores. É preciso que o mundo se abra às novas ideias para além da ideologia", diz.

Nos últimos 70 anos, segundo ele, as disciplinas tornaram-se muito compartimentadas. E a reposta agora terá de ser interdisciplinar.

"Com essa pandemia sem precedentes, diferentes disciplinas se uniram. Uma só não tem como responder ao desafio. Já vejo isso acontecendo. Os cursos estão se preparando para isso. Isso vai ser um grande choque para os sistemas das universidades".