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Covid-19: governo francês enviou sacos de lixo como traje para médicos, conta clínico-geral em livro

Arquivo - Médicos usam trajes e máscara de proteção para tratar paciente com covid-19 em hospital em na França - REUTERS/Eric Gaillard/File Photo
Arquivo - Médicos usam trajes e máscara de proteção para tratar paciente com covid-19 em hospital em na França Imagem: REUTERS/Eric Gaillard/File Photo

15/09/2020 05h16

O clínico-geral francês Jérôme Marty é presidente de um dos principais sindicatos do setor na França. Em seu livro, "O escândalo dos profissionais da saúde contaminados - os bastidores de uma guerra suja", que acaba de chegar às livrarias, ele denuncia o despreparo do governo francês e a situação precária dos profissionais durante o auge da epidemia da covid-19 no país.

O clínico-geral francês, que atua em Fronton, perto de Toulouse, no sudeste, ganhou fama ao denunciar nas redes sociais o despreparo do governo e a situação precária dos profissionais. Segundo Marty, seus colegas se viram diante de um "tsunami" epidêmico, sem material e equipamentos necessários para tratar dos pacientes e se protegerem da contaminação de um vírus potencialmente mortal.

Muitos dos episódios descritos na obra de 300 páginas parecem inacreditáveis em um país desenvolvido como a França, onde a medicina é de ponta e acessível a todos. Sem máscaras e outros materiais disponíveis no mercado, os médicos franceses tiveram que improvisar, usando, por exemplo, máscaras com o prazo de validade vencido e trajes protetores feitos com sacos de lixo, enviados pelas agências regionais de saúde (ARS).

Marty publicou dezenas de depoimentos de colegas que contaram as dificuldades e as angústias de tratar pacientes em plena pandemia, correndo o risco de serem contaminados a qualquer momento. Todas as denúncias foram documentadas em circulares divulgadas para os profissionais pelo governo francês.

No início da epidemia, em março, os médicos receberam até a informação de que poderiam utilizar duas máscaras cirúrgicas, uma por cima da outra, para substituir as chamadas Ffp2, a única proteção facial considerada adequada para contato prolongado com o vírus. "Era preciso deixar provas do que tinha acontecido - e comecei a reunir todos os documentos que eu tinha. Coloquei em ordem cronológica e mandei para a editora", disse Marty à RFI Brasil.

Com mais de 29 mil seguidores no Twitter, o clínico-geral é um dos profissionais mais ativos nas redes sociais e exerce um papel fundamental na pandemia para alertar cidadãos e denunciar falhas na gestão do governo. "O Twitter tem a particularidade de gerar discussão entre outros profissionais da saúde, mas também estabelecer o contato com responsáveis políticos e também jornalistas", declara.

Segundo o médico francês, o governo cometeu falhas que poderiam ter evitado a morte e a hospitalização de muitos profissionais - a estimativa é que ao menos 40 morreram e 4 mil clínicos-gerais foram contaminados pelo novo coronavírus, sem contar aqueles que atuam nos hospitais.

De acordo com Marty, o governo, sem máscaras Ffp2 disponíveis em estoque, defendeu em março que as proteções faciais cirúrgicas, usadas pela maioria da população, seriam suficientes. As autoridades, diz o autor, ignoraram que o vírus pode ser transmitido por partículas suspensas no ar - como uma fumaça de cigarro respirada pelos não fumantes que estão ao redor.

Os profissionais, que esperavam obter as máscaras Ffp2, acabaram ficando sem a proteção necessária. "Se tivessem nos dito desde o começo que essas máscaras não existiam, nós teríamos encontrado uma maneira de encomendá-las mais cedo, passando por organismos locais", explica o clínico-geral.

Uma situação que revoltou a classe médica é que as máscaras de proteção individual foram distribuídas pelo Ministério da Economia para outros setores, como alfândegas, por exemplo. "Se eles tinham essa proteção, melhor para eles, mas por que, então, o governo negou sua importância e distribuiu para alguns funcionários?", questiona Marty.

Clínicos-gerais esquecidos

Durante o auge da crise, os clínicos-gerais franceses ficaram particularmente expostos, ressalta. Isso porque, na França, sem sintomas graves, um paciente consulta primeiro o que no país é conhecido como "médecin traitant" - ele é quem faz a ponte com os especialistas e hospitais.

Foram os clínico-gerais que receberam em seus consultórios os primeiros pacientes contaminados, lembra Marty. Esses doentes, entretanto, acabaram não sendo contabilizados, porque antes dos testes generalizados, apenas as hospitalizações entravam para as estatísticas e o cômputo geral.

"Ouvimos muito neste verão a teoria de que, como não havia hospitalização, também não havia epidemia. O que é falso: a epidemia nunca acabou", reitera. De acordo com ele, o confinamento desacelerou o processo, mas depois o vírus voltou a se propagar e hoje, em seus consultórios, os médicos franceses tratam milhares de casos confirmados da covid-19.

Problema de comunicação

Marty acredita que hoje há mais preparo para enfrentar a epidemia, com o reconhecimento, por exemplo, da transmissão aérea, e a decisão de tornar obrigatório o uso da máscara dentro das empresas e no transporte público - dois dos locais onde o vírus mais propagou na primeira onda. Ele lamenta, entretanto, que a comunicação sobre o uso da proteção facial ao ar livre não tenha sido bem feita.

"Você usa a máscara para proteger a outra pessoa. Para proteger o outro, ele deve estar presente. Ser multado porque você está sem máscara sozinho na rua não faz sentido e não tem nenhuma base científica. Isso gera revolta", defende, dizendo que esse tipo de regra pode gerar o efeito contrário - caso do movimento contra o uso das máscaras.

Nesse sentido, ele diz que o protocolo adotado pelas escolas francesas é insuficiente e há risco de que os estabelecimentos sejam novamente fechados com o aumento das contaminações - quase inevitável nas salas de aula, se um dos alunos ou o professor está doente e não foi isolado a tempo.

Mas, apesar do risco epidêmico, o médico francês acredita que a situação é bem diferente de março e abril. "Temos como reagir, nos proteger, e um conhecimento da doença que faz com possamos tratar o paciente na UTI com anticoagulantes e corticoides", declara. Por outro lado, ele pensa que o fato de o vírus estar circulando em todo o território - o que não era o caso em março, pode levar os hospitais a uma rápida saturação e a confinamentos locais. Mas, em se tratando da epidemia de covid-19, é difícil prever o que de fato vai acontecer.