Quarentena argentina: do exemplo ao fracasso em 203 dias
A quarentena argentina, classificada como a mais prolongada e rígida do mundo, deixou o país mais pobre, mas não conseguiu evitar a alta dos contágios pelo coronavírus. Nas últimas semanas, a Argentina subiu posições na lista dos países com pior desempenho no combate ao vírus.
Márcio Resende, correspondente em Buenos Aires
A 12.ª extensão da quarentena que o presidente Alberto Fernández vai anunciar nesta sexta-feira (9) deve ter ênfase no interior do país, por onde o vírus avança. Nessas províncias, as medidas de isolamento devem ficar mais estritas.
Nos dez municípios que formam a grande Buenos Aires, a área mais populosa do país, não deve haver mudanças significativas. Somente no Distrito Federal, onde o número de casos está em queda, deverá haver flexibilizações.
O presidente deve anunciar a volta dos voos domésticos e dos ônibus interurbanos, depois de oito meses sem que os argentinos pudessem deslocar-se de uma província a outra. A Argentina ainda não permite aulas presenciais nem o uso dos transportes públicos para quem não for trabalhador considerado essencial.
A circulação de pessoas e de veículos requer permissão especial. Estão proibidas as reuniões de amigos e familiares que não convivam.
Perda da popularidade
No entanto, se dependesse da maioria da população, a quarentena deveria acabar, como indicam pesquisas como a da consultoria Giacobbe & Asociados. Os que querem o fim da quarentena chegam a 55,7% da população, contra 33,3% que apóiam uma nova extensão.
Segundo a consultoria Synopsis, somente 35% dos argentinos aprovam a gestão do governo na matéria sanitária. "Os que apóiam a continuidade da quarentena são basicamente os mesmos que ainda apóiam a gestão do governo. Está em linha com a popularidade do presidente Alberto Fernández, que experimenta uma queda paulatina desde março", explica à RFI o analista político, Jorge Giacobbe, autor do estudo.
Em março, o presidente registrava uma taxa de aprovação popular de 67,8%. Desde então, perdeu 33 pontos, chegando agora a 34,8%. A imagem negativa, na via contrária, subiu a 52,8%.
"O presidente Alberto Fernández perdeu tudo aquilo que conquistou durante o começo da quarentena. Voltou ao baixo patamar que tinha ao assumir o cargo em dezembro", observa Giacobbe.
Lucas Romero, diretor da Synopsis, tem a mesma leitura: em março, 80% da população apoiava a forma como o governo encarou o combate ao coronavírus, aplicando uma rápida quarentena. Agora, somente 35% aprovam a gestão da crise sanitária pelo governo.
"A pesquisa mostra que a quarentena não é uma política sustentável no tempo. É uma medida de choque que pode ser implementada durante um curto prazo. O resultado da quarentena explica o baixo nível de apoio ao governo", aponta Romero.
Resultados negativos
Apesar dessas rígidas restrições em vigor, os números mostram que a quarentena como única ferramenta de combate ao vírus fracassou. Nos últimos dez dias, a Argentina passou do nono ao sétimo lugar na tabela geral de contágios. Superou o México e o Peru e está perto de ultrapassar a Espanha e a Colômbia, assumindo o quinto lugar entre os países com mais casos.
Os poucos testes que faz também colocam o país com a taxa positiva mais alta do mundo. De cada dez testados, seis estão contagiados, indicando que o país está longe de controlar a epidemia.
A Argentina ocupa ainda a 12ª posição entre os países com mais mortos por milhão de habitantes. Considerado-se apenas o desempenho dos últimos dias, o país aparece como aquele com mais mortes no mundo.
Com 45 milhões de habitantes, a Argentina tem uma população cinco vezes menor do que o Brasil. Multiplicados os 860 mil contagiados e os 23 mil mortos em proporção à população brasileira, seria o equivalente a quase 4,5 milhões de contagiados e 115 mil mortos. E as mais de 400 mortes diárias da Argentina, seriam equivalentes a duas mil mortes no Brasil.
Em matéria de ocupação das Unidades de Terapia Intensiva, os números da Argentina são bons (média de 65%) e permitem atendimento a todos os doentes. No entanto, o interior do país não se preparou de forma eficaz para a chegada do coronavírus e várias cidades estão com o nível de ocupação dos leitos entre 80% e 90%.
Dos elogios ao fracasso
Para explicar a queda argentina, os especialistas apontam a baixa quantidade de testes, de rastreamento de contatos com doentes e de isolamento da população contagiada. O país adotou a extensão da quarentena como único instrumento para conter o avanço da doença. E essa ferramenta, que aniquila a já combalida economia argentina, chegou ao limite da tolerância social.
Embora haja uma quarentena vigente, cada vez mais as pessoas furam as restrições por necessidade. "Por lógica, este seria o momento para o país endurecer a quarentena, mas já não há mais margem política para isso", indica o analista Jorge Giacobbe.
"O mau desempenho sanitário soma-se às crises política e econômica. O presidente aparece com uma imagem de falta de autoridade e sem poder político", acrescenta Lucas Romero.
Com uma economia em frangalhos e um índice de pobreza alarmante, o governo perdeu o a capacidade de impor mais sacrifícios à população.
Economia destruída pela quarentena eterna
A economia encolheu 19,1% no segundo trimestre e a projeção para o ano, por enquanto, é de um tombo próximo de 15%, a maior queda da história do país. Sem acesso ao crédito nem reservas no Banco Central, o governo tem emitido moeda sem respaldo, fazendo disparar o déficit fiscal e alimentando a inflação.
O peso argentino perdeu 230% do seu valor em um ano, uma perda de valor que ganhou ritmo diário. Muitos alertam para uma desvalorização ainda maior pela frente.
A pobreza chegou a 40,9% no primeiro semestre, 5,5% a mais do que há um ano. No recorte do segundo trimestre apenas, a pobreza atinge 47%.
Já o desemprego subiu quase três pontos. Está em 13,1% porque muitos não saíram para procurar emprego durante a quarentena. Caso contrário, o desemprego real seria mais próximo de 20%.
Com esses números, o coronavírus preocupa menos do que a realidade social. A Argentina, que tinha apostado tudo em salvar vidas a qualquer custo, ficará com a economia destruída, mas também com os mortos pela pandemia.
"O Banco Central praticamente não tem mais reservas. É uma situação crítica. Há uma crise de confiança que pode ser lida como falta de credibilidade na palavra do presidente. O governo não aparece com capacidade para reverter essa crise de confiança", avalia o analista econômico, Roberto Cachanosky.
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