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Conflito territorial gera novas tensões entre Argentina e Chile

Em 2009, a Argentina apresentou nas Nações Unidas os estudos de prolongação do seu território sobre a plataforma continental - iStock
Em 2009, a Argentina apresentou nas Nações Unidas os estudos de prolongação do seu território sobre a plataforma continental Imagem: iStock

Márcio Resende

Correspondente da RFI em Buenos Aires

03/09/2021 07h47

Os dois países acirram a disputa por uma área de 5.302 km² na plataforma continental, acusam-se mutuamente de um se apropriar do território do outro, e preparam-se para uma batalha diplomática e jurídica.

Os primeiros movimentos estratégicos de ambos os lados visam obter o apoio político interno por unanimidade para chegarem fortalecidos à próxima fase do conflito: a diplomática.

"O Chile quer um diálogo racional e construtivo com a Argentina. Considera ineficaz entrar num maior debate público", indicou o chanceler chileno, Andrés Allamand.

Apesar da polarização que caracteriza o atual cenário político tanto na Argentina quanto no Chile, os dois governos têm obtido o respaldo dos seus respectivos Parlamentos, de governistas e opositores.

"Com um decreto intempestivo, o Chile quer apropriar-se do nosso território", sintetizou o chanceler argentino, Felipe Solá, durante exposição, nesta semana, à Comissão de Relações Exteriores do Senado.

"Deve ficar claro que estamos todos do mesmo lado no país", pediu.

Em resposta, senadores governistas e opositores concordaram em aprovar, na semana que vem e, por unanimidade, uma enérgica declaração que rejeite a decisão do governo chileno de estender os seus domínios sobre uma área marítima no Atlântico Sul que os argentinos consideram própria.

Conflito adormecido

A declaração vai acusar o Chile de "atribuir-se ilegítimas faculdades para projetar a sua plataforma submarina continental de modo arbitrário, violando tratados internacionais vigentes e sem respeitar o Acordo de Paz e de Amizade de 1984".

O acordo de 37 anos atrás foi a bandeira da paz que Argentina e Chile assinaram, depois de quase iniciarem uma guerra seis anos antes por motivos semelhantes aos de agora.

Em 1978, a disputa territorial sobre as ilhas dentro e ao Sul do canal de Beagle, na margem Sul da Terra do Fogo, deixou a Argentina e o Chile à beira de uma guerra. As tropas argentinas já tinham a ordem de invadirem as ilhas quando uma repentina decisão política resolveu aceitar uma última possibilidade: a mediação do Papa João Paulo II.

As negociações conduziram ao Tratado de Paz e de Amizade que a Argentina acusa agora o Chile de desrespeitar.

"O Chile manifesta uma vocação expansiva que a Argentina rejeita", acusou o chanceler argentino.

Do outro lado da Cordilheira dos Andes, os senadores chilenos já aprovaram, por unanimidade, a decisão do presidente Sebastián Piñera de incluir na Carta Náutica do Chile uma área que a Argentina já tinha incorporado aos seus mapas.

"Os legisladores apoiam as ações empreendidas pelo governo do Chile para fazer valer os seus direitos", diz o texto apresentado, na quarta-feira, pelo presidente da Comissão de Relações Exteriores do Chile, Jorge Pizarro.

Guerra sem armas

O único ponto em comum entre os dois governos é a disposição para o diálogo, embora, devido ao grau de divergência, a disputa tenda a terminar nos tribunais internacionais, instância prevista no Tratado de 1984.

"As vias para resolvermos a controvérsia são as negociações bilaterais ou um tribunal arbitral. Não existe uma terceira maneira", definiu o chanceler argentino, Felipe Solá, descartando a hipóteses de um conflito bélico.

No sábado passado (27), o governo chileno publicou um decreto que redefine o seu espaço marítimo, abrangendo uma área que a Argentina considera sua.

"O Chile pretende apropriar-se de uma parte da plataforma continental argentina e de uma extensa área dos fundos marinhos oceânicos, espaço marítimo que forma parte do Patrimônio Comum da humanidade, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar", reagiu a Chancelaria argentina, em nota.

Porém, a decisão do Chile foi ratificada pelo presidente chileno, Sebastián Piñera, e defendida pelo seu chanceler, Andrés Allamand.

"O que o Chile está fazendo é exercer o seu direito de declarar a sua plataforma continental", disse Piñera.

"Ninguém se apropria daquilo que lhe pertence. A área assinalada, a denominada plataforma continental jurídica, que chega às 200 milhas, pertence ao Chile de pleno direito", acrescentou Allamand.

A área em litígio

O decreto do governo chileno amplia a sua plataforma continental em mais de 30 mil km², sendo 5.302 km² ao leste do meridiano 67º 16' 0, considerado, pelo Tratado de Paz e de Amizade de 1984, como o limite entre os dois países.

"O Chile não pode pretender projetar a sua soberania para além do estabelecido no artigo 7 do Tratado de Paz e de Amizade que define o direito chileno para o oeste do meridiano; não para o leste", critica o chanceler argentino, Felipe Solá.

E, para o oeste, mesmo que não seja sobre o seu território, a Argentina também acusa o Chile de apropriar-se de outros 25 mil km2 de leito e subsolo marinho, que é patrimônio da humanidade.

ONU aprovou os direitos da Argentina

Em 2009, a Argentina apresentou nas Nações Unidas os estudos de prolongação do seu território sobre a plataforma continental. A ONU permite que um país reivindique a ampliação das 200 milhas às 350 milhas náuticas, desde que fundamentado.

Entre 2012 e 2016, a CLPC (Comissão de Limites da Plataforma Continental), ligada à ONU, avaliou o material técnico até aprovar os direitos argentinos em 2016, estabelecendo um limite marítimo definitivo de acordo com a Convemar (Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar).

Em agosto do ano passado, esse limite exterior da plataforma continental argentina tornou-se lei nacional.

Quem cala consente

A Argentina garante que o Chile se manteve em silêncio durante todos esses anos; o que, em direito internacional, implica um reconhecimento tácito dos direitos argentinos.

"E nunca, durante todos esses anos, nem durante a apresentação nem durante a decisão da Comissão, o Chile contestou a posição argentina. A única via que o direito internacional reconhece para uma objeção é o Anexo 1 do Regulamento da CLPC da ONU", ressalta Felipe Solá.

Já o governo chileno garante ter questionado a exposição argentina algumas vezes.

"É importante deixar bem claro que as autoridades argentinas foram devidamente informadas em 2009, em 2016 e em 2020. O Chile manifestou que a matéria era inoponível e que reservava os seus direitos", rebateu o chanceler chileno, Andrés Allamand.

A Chancelaria argentina garante que a nota chilena, enviada em 2016, só mencionava "imprecisões"; não fazia objeções.

No final de 2020, o governo chileno enviou uma nota diplomática ao secretário-geral da ONU, António Guterres, através da qual afirmou "não reconhecer o traçado na área" atualmente em disputa, indicou que "reservava o seu direito sobre essa zona", mas também admitiu que" não contestou a apresentação argentina no seu devido momento".