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Pesquisador brasiliense mergulha na cultura da etnia sul-africana zulu

23/10/2021 11h15

David Almeida está encarando sua primeira viagem internacional, que começou há dois meses. Ele saiu de Brasília, onde nasceu, para ter na África do Sul uma experiência de vida que considera única e de fundamental importância para sua pesquisa do doutorado em Filosofia pela Universidade de Brasília, onde também se graduou e fez mestrado na mesma área. Aos 33 anos, ele está vivendo em Durban, terceiro município mais populoso do país, famoso pelas praias, o clima quase nunca frio, a culinária marcada pelo curry e pelo considerável número de descendentes de indianos, apesar da maior parte da população ser negra.

Durban é uma cidade portuária que fica na província de KwaZulu-Natal, região com forte presença do povo zulu, uma das principais etnias sul-africanas. Apesar do notório perfil aguerrido, o grupo étnico também foi o criador da filosofia ubuntu, que exalta a ideia de coletividade humana. Um conceito abrangente, mas às vezes resumidamente definido da seguinte forma: eu sou porque nós somos. Para o pesquisador, este estilo de vida é a maior lição que os brasileiros deveriam aprender com os zulus.

"Eu acredito que, talvez, a gente não conheça presentemente outro povo que tenha uma concepção tão elaborada, tão rica no sentido da saúde das relações humanas e das relações humanas com a outra parte da natureza que não somos nós, que são os outros seres" explicou.

Desde 2018 o brasileiro é também um constelador, ou seja, adepto da terapia integrativa criada há mais de 50 anos pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger.

"Quando eu me deparei com essa terapia, eu fiquei extremamente curioso para saber se tinha alguma influência africana, porque era perceptível que várias formas de relacionamento e conceitos eram expressos ali a partir da terapia do Bert", lembrou.

O brasiliense disse que depois de muito pesquisar, percebeu que a alma da constelação como o alemão apresenta é zulu. Influenciado pela filosofia da etnia sul-africana, o brasileiro disse ter desenvolvido a constelação zulu, inspirada "na prática e teoria do Ubuntu, como esse povo experiencia na vida cotidiana".

David contou que acabou desenvolvendo um método que vem diretamente da cultura zulu, da qual escolheu seis princípios para sustentar o seu trabalho: interdependência, mediação, autoconhecimento político, natureza, totalidade e ancestralidade viva. "Daí surgiu a necessidade de vir para cá e estudar pessoalmente", disse. "Eu faço toda a questão de dar o reconhecimento, dizer que isso não é criação minha", esclareceu. 

"A constelação Zulu revela que a maioria dos problemas psíquicos que a gente desenvolve na vida adulta vem desse momento inicial da nossa relação com nossos pais e que herdamos esses problemas deles, que não criaram esses problemas, mas herdaram também dos seus pais. E aí é como se a gente fizesse um retorno há algumas gerações para ver onde é que aquele trauma foi criado e, portanto, onde ele precisa ser visto novamente para ser reconhecido e dado o devido lugar para os atores envolvidos", detalhou.

David chegou semanas depois do fim da onda de saques coordenada por apoiadores do ex-presidente Jacob Zuma em protesto contra a prisão do político, que também é zulu. O brasileiro encontrou pelas ruas um clima bem mais pacífico do que o vivido naqueles dias de julho em diferentes cidades da África do Sul, princialmente em Durban. Uma das maiores surpresas, segundo ele, foi a energia do local.

"Parece que era tão intensa que eu me via tendo que sentar, tendo que colocar meu pé no chão, tendo que olhar para várias concepções que eu tinha sobre meu trabalho, sobre mim", disse.

Até agora a experiência do pesquisador foi se deparar com um dia-a-dia de traquilidade e solidariedade pela cidade, reforçando a ideia de união na qual tanto ele se inspira. Um exemplo que ficou gravado na sua memória foi quando, nos primeiros dias na cidade, pediu informações nas ruas sobre como chegar a uma biblioteca. O primeiro a dar informação apontou uma direção e disse para pedir uma nova informação mais adiante. Isso se repetiu por mais três vezes até ele conseguir chegar ao local que procurava.

"E aí eu percebi que o ensino da direção era uma tarefa coletiva também. Se o primeiro que eu perguntei me explicasse todo o caminho eu não saberia, por ser um estrangeiro, porque estava longe. E aí eles foram como que passando bastão para o próximo que estava mais perto do lugar me direcionar para onde eu queria", lembrou.

Durante a entrevista - feita virtualmente -, o pesquisador não escondeu o encantamento com o país e a felicidade de estar descobrindo mais a respeito de uma etnia sobre a qual tanto estudou. "Eu comecei a estudar sobre filosofia africana na universidade, e em uma matéria específica, porque a maior parte é filosofia europeia e norte-americana. Eu fui mergulhando nisso e percebi que era onde eu me encontrava: na filosofia africana", afirmou.

Faz parte da rotina dele em Durban, uma cidade moderna e bem estruturada, frequentar a biblioteca da Universidade de KwaZulu-Natal, onde pode encontrar materiais raros, impossíveis de serem acessados do Brasil. Um exemplo foi um exemplar de "Body and Mind in Zulu Medicine" (Corpo e Mente na Medicina Zulu), livro escrito pela antropóloga zulu Harriet Ngubane em 1977.

Zululand

Mas uma das metas agora é visitar Zululand, um município em KwaZulu-Natal onde praticamente todo mundo fala isiZulu, a língua tradicional deste povo e um dos 11 idiomas reconhecidos pela constituição sul-africana como oficiais do país. O inglês também é um deles e é em inglês que o brasileiro tem se comunicado com as pessoas.

Há quem se refira à Zululand como o reino Zulu, pois é onde está a família real da etnia. O rei zulu não tem poder de chefe de Estado, mas exerce grande influência sobre as pessoas da etnia em diversos aspectos.

"Eu acredito que os povos têm o direito de se governarem da forma que eles próprios escolherem. A autonomia deles deve ser respeitada por qualquer que seja a instituição que se relacione com esse povo", analisou.

Outro objetivo na viagem é conseguir ter contato com um sangoma, a "fonte principal" da pesquisa do brasiliense. Para melhor explicar o que são os sangomas, ele faz uma comparação com os conhecidos médicos.

"Não tem outra palavra melhor para descrever. É um médico que não usa remédios da farmácia. Usa ervas, usa plantas e chás e faz a cura através desses métodos tradicionais, mas principalmente através da comunicação com os ancestrais da pessoa, ja falecidos e que têm uma ligação ainda forte com a família", definiu.

Mas mesmo estando em Durban, e não no interior, o pesquisador disse que são enriquecedoras as conversas do dia a dia com moradores, de diferentes etnias. 

Tensão racial

As divergências raciais que marcaram a história do país terminaram oficialmente há décadas, o que não significa que as feridas estejam totalmente cicatrizadas. "Eu percebi essa tensão racial está muito mais evidente no lugar do que no Brasil. E eu estou tentando não intensificar", comentou, antes de lembrar que temas abordados tranquilamentes no Brasil não são bem-vindos entre todos os sul-africanos. Ele deu como exemplo o apartheid, regime de segregação racial que vigorou até o início dos anos 1990 no país. O brasileiro percebeu que essa "não é uma história que as pessoas gostam" de comentar na África do Sul.

David é um dos seis filhos de uma dona de casa negra, paraibana, e um pedreiro branco, baiano. A questão racial sempre foi um pouco tabu na família, algo sobre o qual não se falava. O doutorando em Filosofia disse que uma das maiores surpresas até agora foi perceber que ele não é visto como negro na África do Sul. Em Durban, o consideram o que os sul-africanos chamam de "coloured" ("de cor", em tradução livre), que corresponde ao moreno no Brasil.

"Você pode ser considerado 'coloured' quando as pessoas te veem na rua, mas se souberem que você é brasileiro você passa a ser brasileiro", contou.