A realpolitik e a hegemonia russa: as verdadeiras motivações de Putin na Ucrânia?
Os reais objetivos da Rússia e os desdobramentos da invasão da Ucrânia, além do impacto da ocupação russa na legitimidade do regime de Vladimir Putin são alguns dos assuntos explorados pelo cientista político Vicente Ferraro Jr., pesquisador da Universidade de São Paulo, especialista em política russa e espaço pós-soviético nesta conversa com a RFI.
RFI - No frigir dos ovos, o plano de Vladimir Putin é depor o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy e colocar um fantoche no lugar?
Vicente Ferraro Jr. - Sim, ao que tudo indica, e como o próprio presidente [Zolodomyr] Zelenskyy já anunciou, ele seria o alvo n°1, e sua família o alvo n°2. Possivelmente a ação russa será a de tentar colocar um aliado no governo ucraniano, ainda que de maneira provisória, o que pode também ocasionar uma reação na sociedade ucraniana, não há evidências de que uma ocupação russa desse tamanho conseguisse uma legitimidade social muito considerável na Ucrânia. Pode ser que haja uma reação social muito incidente.
RFI - Aqui na França vemos muitos cientistas políticos falando em uma guerra ideológica da Rússia de Putin contra o Ocidente. Você compartilha desse ponto de vista ou será que o que motiva o presidente russo é a realpolitik pura?
Vicente Ferraro Jr. - Eu acredito que nesse conflito existam vários fatores envolvidos. Há a questão da realpolitik, a diplomacia russa questiona o avanço da Ucrânia no leste europeu desde a década de 1990, antes de Vladimir Putin e Boris Ieltsen já se questionava, mas ao mesmo tempo há também fatores ideológicos envolvidos. Em 2021, Putin fez um artigo em que questionava as atuais fronteiras da Ucrânia e a própria existência do Estado ucraniano, como um Estado soberano. Ele também questionou políticas étnicas que foram implementadas durante o período soviético, que vieram dar origem às atuais fronteiras ucranianas, então há sim uma discussão ideológica, nacionalista por trás. Um terceiro elemento da realpolitik seria a contestação da hegemonia russa no espaço pós-soviético desde os anos 2000, as chamadas revoluções coloridas, que em alguns casos chegaram lideranças pró-Rússia e levaram ao poder lideranças pró-Ocidente. E também há o impacto que isso pode ter na popularidade de Vladimir Putin, na legitimidade do seu regime. Nos últimos anos ele teve uma queda de popularidade, tanto em 2008, na invasão da Geórgia, quanto em 2014, no começo da crise ucraniana, a popularidade de Putin teve um de seus maiores picos.
RFI - Outra crítica que ouvimos muito por aqui é uma certa ingenuidade dos líderes europeus em relação aos reais objetivos de Putin nos últimos 20 anos. Você concorda com essa avaliação?
Vicente Ferraro Jr. - Ao mesmo tempo em que se pode considerar um certo erro essa expansão da OTAN desde os anos 1990, o que gerou de fato uma percepção de insegurança por parte da Rússia, os países do leste europeu, principalmente os bálticos, Letônia, Estônia, Lituânia, ou do bloco socialista, como a Polônia, por razões históricas e políticas têm uma percepção da Rússia como uma ameaça. A tentativa de entrar na OTAN para esses países envolvia também questões pragmáticas, de realpolitik. A ideia dos Estados Unidos de criar um cordão sanitário geopolítico em volta da Rússia certamente gerou uma animosidade. Mas, desde 2014, com o que se passou na Ucrânia, com a incorporação da Crimeia à Rússia, e com a ajuda russa no Donbass, essa percepção de ameaça no leste europeu por parte da Rússia se tornou ainda mais incisiva. Não à toa, a Ucrânia aumentou a pressão para entrar na OTAN, que é vista como um mecanismo de segurança.
RFI - Putin invade a Ucrânia como um senhor da guerra, um verdadeiro warlord, mas sem deixar de ser corajosamente contestado nas ruas pelos próprios cidadãos russos, com protestos maciços, especialmente em Moscou e São Petesburgo, terra natal de Putin, onde mais de 2.000 pessoas foram presas por se manifestarem contra a guerra. A voz da população russa é um peão relevante nesse xadrez, ou tende a ser abafada?
Vicente Ferraro Jr. - A julgar pelo histórico de protestos na Rússia, a tendência é que haja repressão e que o governo tenha pouca consideração por estas manifestações populares. No caso da popularidade do Putin, é um pouco incerto... Por um lado esse conflito pode ajudar a legitimar a ideia de que a Rússia está cercada de inimigos, num contexto onde a popularidade de uma liderança acaba subindo com um conflito externo, mas, por outro lado, há uma relação histórica e cultural muito grande entre a Rússia e a Ucrânia, e isso pode ter um efeito negativo, uma percepção negativa na sociedade russa. Dependendo do número de mortes, isso pode ser percebido como uma guerra fratricida, entre povos irmãos, e isso pode ter um efeito negativo para Vladimir Putin.
RFI - Bastante curioso é a instrumentalização do termo nazista, as partes que se apropriam ideologicamente de conceitos do passado para justificar o seu lado nessa guerra, uma estratégia que parece ter ecos profundos no Brasil. A que serve a instrumentalização ideológica do nazismo nessa disputa?
Vicente Ferraro Jr. - Isso faz parte da disputa de narrativas no conflito. A gente vive num conceito de guerra híbrida, ou seja, a guerra não está apenas no campo das armas, militar, mas também no campo ideológico, no campo ideacional, então essa ideia de vincular ao nazismo faz parte de um maniqueísmo, de tentar criar uma moralidade no conflito, onde uma lado é demonizado e o outro é vangloriado. Em 2014, quando o presidente pró-russo na Ucrânia foi derrubado, houve uma manifestação popular muito grande, que culminou na sua derrubada e, em parte desse movimento havia algumas lideranças de partidos ultrarradicais, embora não fossem os únicos participantes desse movimento. Só que a narrativa russa acabou realçando o papel desse grupos. Não há evidências de um massacre étnico como a narrativa russa quis impor, apesar da existência de massacres como o de Odessa. Vale destacar que o próprio Zelensky é judeu e esses partidos ultrarradicais, a partir de 2014, não tiveram mais proeminência eleitoral, não tiveram crescimento significativo na política ucraniana.
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