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EUA: Decisões da Suprema Corte sobre aborto, armas e clima são apenas o começo de reversões

03/07/2022 07h17

A Suprema Corte dos Estados Unidos, que ganhou um impulso à direita durante o governo do ex-presidente Donald Trump, apenas começou o que deve ser uma onda de reversões de decisões judiciais tomadas nas últimas décadas, com viés progressista. Os efeitos da configuração atual da Casa serão sentidos por décadas, antecipam especialistas.

Em apenas 10 dias, a mais alta instância judicial do país retirou o direito das americanas de abortarem, concedeu o direito dos civis de portarem uma arma em público, limitou drasticamente os poderes federais para combater as mudanças climáticas e ampliou o espaço da religião no espaço público americano. As decisões, adotadas pelos seis juízes conservadores da corte face a três colegas progressistas, são as primeiras demonstrações das novas forças em um Judiciário dividido. As sentenças marcam o fim de anos de uma composição mais equilibrada da Casa, que possibilitou determinações históricas como a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo, em 2015.  

Desde os anos 1970, a direita republicana buscava ampliar o peso no tribunal, no que era visto como a única possibilidade de reverter medidas que os conservadores jamais aceitaram. Com Trump, essa revanche foi possível.

Na sessão 2021-2022, encerrada na última quinta-feira (30), "a corte deu uma virada radical e súbita, numa direção muito mais conservadora", atesta Stephen Wermiel, professor de direito constitucional da American University. "Foi uma rara situação de a Corte Suprema retirar radicalmente direitos constitucionais" dos americanos, apontou o especialista.

Polarização recente

A última vez que a Suprema Corte foi relativamente homogênea ideologicamente foi na década de 1960, quando promulgou algumas de suas reformas mais progressistas, lembra Neal Devins, especialista em direito da William & Mary University. Durante a presidência do juiz Earl Warren (1953-1969), o templo da lei mudou o cotidiano de milhões de americanos, acabando com a segregação racial, fortalecendo o poder do estado federal e lançando as bases para a decisão de 1973 que tornou o aborto um direito para todas as mulheres americanas.

A corte de Earl Warren foi criticada com veemência pelos conservadores, da mesma forma que a esquerda hoje ataca o trabalho do conservador John Roberts. Mas, diferentemente de hoje, os juízes não necessariamente decidiam as decisões mais cruciais conforme as suas supostas afinidades políticas. Cinco dos sete juízes que apoiaram a decisão de 1973 de estender o direito ao aborto a todos as americanas foram, por exemplo, nomeados pelos republicanos. Na Suprema Corte de hoje, o entendimento entre os dois campos é muito mais raro.

 

Discriminação positiva  

O bloco conservador presidido por John Roberts também se distingue pela profunda convicção de que a Suprema Corte, no passado, concordou em examinar questões que não deveria ter que decidir. Esse é o argumento que os juízes usaram para justificar o cancelamento do direito ao aborto, alegando que cabia aos eleitores de cada estado americano decidir essa questão social.

O tribunal também considerou que cabia ao Congresso, e não a uma agência governamental independente, estabelecer padrões regulatórios, como limites de emissões de gases de efeito estufa. Os críticos acusam os parlamentares de ignorar deliberadamente a realidade no país, com os estados americanos tão profundamente divididos, da progressiva Califórnia ao conservador Wyoming.

A Suprema Corte também sabe que o Congresso, que tem dificuldades para adotar grandes reformas em questões sociais, "não funciona", disse Richard Lazarus, professor de direito da prestigiosa Universidade de Harvard. No entanto, o tribunal "ameaça a capacidade do Estado de garantir a saúde e o bem-estar de seu povo, num momento em que os Estados Unidos e todas as nações do mundo enfrentam o maior desafio ambiental da história", lamenta.

Parece improvável que o bloco conservador do tribunal desacelere a investida recém lançada. Os juízes concordaram em examinar uma série de casos potencialmente determinantes no início do ano letivo, principalmente relacionados à discriminação positiva e à maneira como as eleições são regulamentadas.

Após 50 anos de espera, os conservadores "têm a oportunidade de dar um rumo radicalmente diferente" ao país, avalia o professor Wermiel. "Eles não vão deixar essa chance escapar."

RFI com AFP