Milei em 100 dias de governo: aperto fiscal, maior inflação do mundo, mas ainda com apoio popular

O presidente argentino completa, nesta terça-feira (19), os primeiros 100 dias de um governo marcado pela ausência de leis aprovadas, pelos elevados custos sociais de um forte ajuste fiscal e pela promessa de que, desta vez, o esforço vai valer a pena. Os argentinos resistem à maior inflação do mundo abraçados a uma esperança, mas a pergunta ainda sem resposta no país é até quando dura a tolerância social?

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Javier Milei chegou à Presidência sem nenhum governador e com apenas 10% dos senadores e 15% dos deputados. Devido a essa hiper minoria parlamentar, não conseguiu ainda aprovar uma única lei, impedindo a consolidação de um plano de estabilização da economia.

"Para um programa de mudança de regime, são necessários três elementos: estabilização macroeconômica, reformas estruturais e institucionais e anúncios de alto impacto que marquem um antes e um depois. O governo começou a estabilização pela correção dos preços e pelo ajuste fiscal, mas ainda falta dar sustentabilidade antes das reformas que criem condições para o investimento. O que temos é uma mudança de regime incompleta devido à falta de apoio do Congresso", explica à RFI o economista Luis Secco, diretor da consultora Perspectivas Econômicas.

No começo de fevereiro, Javier Milei decidiu retirar do debate um pacote de leis que começou com 664 artigos e, depois da resistência opositora, foi reduzido pela metade. O governo pretende agora que esse pacote volte ao debate com 269 artigos.

Na semana passada, o Senado argentino reprovou um decreto com 366 medidas, deixando o governo sob risco de uma decisão desfavorável na Câmara de Deputados.

"Se rejeitarem o decreto, vamos dividi-lo em sete outros decretos e começar todo o processo novamente. Não vamos baixar os braços até conseguirmos. Sabemos para onde queremos ir", adverte o presidente Segundo o próprio Javier Milei, outras três mil medidas de reformas do Estado e de desregulamentação da economia aguardam na gaveta a chance de serem aprovadas.

Até agora, Milei só conseguiu aplicar o aperto fiscal e a liberação de preços. Em outras palavras, por enquanto, só foram conhecidos os custos. As bases para os benefícios em longo prazo dependem do Congresso.

Apoio popular preservado

Javier Milei foi eleito com 55,7% dos votos, volume de apoio popular que mantém, apesar da severidade do ajuste, do tamanho da recessão e da confrontação com vários atores políticos e sociais.

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Segundo sondagem da consultora Giacobbe & Asociados, Milei tem uma imagem positiva de 53,6%. "É praticamente a mesma aprovação daqueles que votaram nele. Isso é bom, mas também indica que 46% da população é contra. Isso é praticamente metade da população. É um número alto para um governo que começa", avalia Giacobbe para a RFI.

Esses números chamam a atenção se confrontados com os 71,3% de inflação acumulada - sem reajuste salarial - desde que o político assumiu o cargo em dezembro.

Segundo a consultora Empiria, com base nos dados oficiais, a média dos salários em janeiro ficou cerca de 7% abaixo do limiar de pobreza, evidenciando a perda de poder aquisitivo generalizada.

Sinceridade como credibilidade

São quatro as razões principais para que Javier Milei mantenha o seu capital político, mesmo num contexto de desgaste provocado por decisões antipáticas.

Ainda quando candidato, Javier Milei sempre disse que faria um forte ajuste na economia. Como símbolo da drástica redução que promoveria no gasto público, adotou uma motosserra como símbolo de campanha. Depois de eleito, continuou a dizer que inflação seria elevada e extremamente dolorosa no primeiro trimestre. Ele fez previsões de que a alta só acabaria depois de dois anos.

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Outro fator que o beneficia é que Milei trava o seu conflito contra o que ele chama de "casta política", isto é, uma elite de políticos profissionais, de sindicalistas há décadas no poder e de empresários incrustados no Estado que não querem perder os seus privilégios.

Conforme uma sondagem de Giacobbe, 55,9% da população concorda com essa visão usada para justificar a reprovação de leis no Parlamento. Longe de tentar conciliar com os legisladores, Milei ataca os opositores e a população lhe dá a razão. Segundo Giacobbe, 45,6% da população concorda quando Milei classifica a Câmara de Deputados como "um ninho de ratos". Outros 19,3% concordam parcialmente.

"Quanto mais duro com a casta, mais próximo da opinião pública que o apoia, mas ainda mais longe daqueles que aprovam as leis das que ele precisa. A dúvida é se o apoio da opinião pública é suficiente para contar com um mínimo de governabilidade para avançar", questiona o economista Luis Secco.

Um terceiro fator é que a maioria dos argentinos também entende que a atual situação econômica é uma herança do governo anterior.

Por fim, a quarta razão é que, na oposição, não há um líder capaz de capitalizar as derrotas ou os erros de Milei.

Para Jorge Giacobbe, a melhor coisa que Milei fez para preservar a sua credibilidade foi dizer a verdade sobre o grau de dor que viria pela frente com o ajuste. "O político clássico está acostumado a prometer o paraíso sem dor. Milei partiu de outro lugar: começou com a advertência de que ia doer", compara.

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A maior crítica a Milei nesses primeiros cem dias de governo é o modo de fazer política, disparando ataques contra todos. O presidente tem uma forma agressiva de lidar com adversários ou críticos. Ele tem brigado com todos aqueles que não pensam como ele: opositores, jornalistas, artistas, governadores, inclusive contra aqueles dos quais depende.

"A lógica de Milei não é conciliação, mas a exposição dos que estão contra as mudanças que uma maioria votou", aponta Giacobbe.

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Tolerância social

A pergunta que analistas, agentes econômicos e o próprio Milei fazem todos os dias é: por quanto tempo a opinião pública será favorável ao governo sem ver os benefícios do severo ajuste de 6% do Produto Interno Bruto?

"A queda da produção supera amplamente a de recessões anteriores e aproxima-se daquela provocada pelo isolamento forçado pela pandemia. Até quando pode durar o apoio da opinião pública se o período de custos que superam os benefícios se estender mais do que o esperado?", questiona um relatório da Perspectivas Econômicas.

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Durante a campanha, Javier Milei prometia usar uma "motosserra" e que, desta vez, o ajuste seria pago pela "casta política". No entanto, até agora, 60% do esforço veio do "liquidificador" que diluiu salários e aposentadorias, algo que Milei não disse nem durante a campanha nem antes de aplicar. O próprio presidente reconhece que o déficit fiscal zero dos últimos dois meses foi graças a diluir salários e aposentadorias.

"Conseguimos evitar a hiperinflação, atingimos o déficit zero e estamos saneando o Banco Central. Conseguimos tudo isso, apesar da classe política, devido à velocidade e a magnitude do ajuste, foi motosserra e liquidificador", admite Milei.

Para conter a inflação, o governo tem evitado permitir a recomposição salarial, deflagrando uma onda de greves que todas as semanas paralisa algum setor do país.

Nas sondagens, muitos dizem que podem aguentar entre seis meses e um ano. No estudo de Giacobbe, 65,2% estão dispostos a resistir entre seis meses e os quatro anos de mandato.

"A pergunta aos entrevistados visa descobrir qual é a fronteira de dor tolerável. A maioria dos entrevistados procura manter a esperança em Milei, mas uma coisa é dizerem que vão aguentar 48 dolorosas sessões; outra, é a realidade de abandonar o tratamento na metade por não suportar a dor", explica Giacobbe para logo concluir: "Esse é o grande risco para o Governo e é o que eu acho que vai acontecer", prevê.

O próprio Milei reconhece que é preciso dar logo resultados para aumentar a disposição das pessoas a resistirem à recessão. Quando fala em dar resultados rápidos ele se refere à baixar drasticamente a inflação.

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Por enquanto, o presidente só promete que, "desta vez, o esforço vai valer a pena", mas a tolerância social não vive apenas de esperança. "Esse é o desafio para os próximos cem dias", conclui Jorge Giacobbe.

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