Rússia: diante da censura, jovens começam a se reunir em grupos alternativos para debater política

Entre a censura permanente e leis cada vez mais restritivas, a população russa evita qualquer tipo de expressão de opinião em espaços públicos. Mas isso não significa que os problemas do país deixaram de ser debatidos. Grupos de discussão se multiplicam, discretamente pelo país.

Anissa El Jabri, correspondente da RFI na Rússia

No segundo andar de um antigo prédio industrial que se tornou um ponto de encontro da moda em São Petersburgo, cadeiras instaladas em forma de arco aguardam a chegada dos participantes de uma discreta reunião. A sala, ainda vazia, vai acolher cerca de trinta pessoas dentro de algumas horas. Os debates serão conduzidos por Eva, Nikita e Quetiapine. Eles têm menos de 30 anos e são os organizadores dos debates que acontecem nesta noite.

"Iniciamos este projeto em 2018 em Moscou, como um grupo de discussão onde podíamos falar sobre política sem nos tornarmos inimigos", se lembra Nikita. "Queríamos contribuir para uma espécie de paz civil, ensinando as pessoas a conversarem umas com as outras, apesar das contradições e dos desacordos", explica.

O projeto, no qual todas as decisões são tomadas por consenso, se espalhou pelas principais cidades do país. Além de São Petersburgo, grupos se formaram em Ekaterinburgo, Kazan e Novosibirsk. Mas a guerra, a repressão e a polarização da sociedade russa interromperam tudo por quase um ano.

"A sociedade estava sob tensão, de ambos os lados. Algumas pessoas não queriam nem se encontrar", se recorda Qetiapine. "Diante desse contexto, no início não sabíamos se seríamos capazes de conter qualquer conflito eventual entre os participantes, nem como lidar com comentários que poderiam nos criar problemas diante da lei", explica.

Mas aos poucos, o grupo foi se reestruturando, a partir de uma nova dinâmica, abordando temas delicados de maneira mais indireta. "Primeiro reformatamos o projeto e nos concentramos na organização de eventos que pudessem ajudar as pessoas a pensar sobre o que estava acontecendo em 2022 [quando a Rússia lançou sua ofensiva contra a Ucrânia]. Por exemplo, exibimos filmes sobre a guerra no Vietnã ou sobre a guerra da França na Argélia, eventos que poderiam ajudar as pessoas a pensar sobre os acontecimentos atuais, mas sem precisar se referir a eles diretamente", detalha Qetiapine.

Divergência inclusive entre os organizadores

Mas essa forma de refletir sobre o contexto russo sem necessariamente falar sobre a questão não agradava a todos. Os próprios mediadores do projeto não chegavam a um consenso sobre o novo método. "Tivemos uma avalanche de debates e divergências muito difíceis em nossos grupos de discussão internos do Telegram", admite Nikita. "Mas chegamos finalmente a um acordo. Digamos que algumas pessoas acabaram aceitando que convidássemos determinados perfis. E aqueles que queriam que esse tipo de perfil viesse também fizeram concessões", diz, sem explicar a quais "perfis" se refere.

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Segundo os organizadores, atualmente as divergências são aceitas ou discutidas com calma. "Organizamos um evento fora da Rússia e convidamos alguém da 'Sociedade do Futuro', uma organização que ajuda a fornecer ajuda humanitária aos soldados da operação especial", relata Eva, como uma forma de exemplo dessa abertura. No entanto, rapidamente a jovem é interrompida por Nikita, que levanta a mão: "Objeção! Ajudar os soldados não é ajuda humanitária", lança a jovem, provando que alguns pontos ainda dividem dentro do próprio grupo.

Mas de acordo com os organizadores, todos os participantes vêm com suas próprias opiniões e palavras. Alguns falam de "operação especial", enquanto outros usam o termo "invasão em grande escala", duas definições que estão no centro das divergências no país, onde cada lado da população vê de uma maneira a ação de Moscou na Ucrânia. Sem mencionar a palavra guerra, cada um apresenta os fatos à sua maneira. Além disso, os organizadores sempre lembram os participantes desses encontros das leis existentes na Rússia e de suas possíveis consequências penais do que dizem.

"Me ajudou a não enlouquecer"

Os organizadores também lembram que bem todos os assuntos discutidos são ligados às tensões entre Rússia e Ucrânia. Alguns dessas discussões noturnas podem tratar da proteção do patrimônio histórico de São Petersburgo, de questões religiosas ou afetivas. Isso também reflete a posição dos próprios organizadores, que evoluiu nos últimos meses.

"No início, o que me atraía nesse projeto era a possibilidade de frequentar um lugar onde pessoas com pontos de vista absolutamente diferentes pudessem conversar entre si sem brigar e até mesmo se reunir para desenvolver uma posição comum", conta Tatiana. "Mas, nos últimos dois anos, vi nosso projeto mais como um lugar seguro, um lugar de conforto. Saí da Rússia por um tempo e, quando voltei, isso me ajudou muito a não enlouquecer, porque pude conhecer pessoas que pensavam como eu e também pude oferecer a elas algo que as ajudou", estima.

Perfis diversos

Alguns dos participantes já estiveram envolvidos em atividades políticas públicas no passado, atuando em manifestações ou campanhas eleitorais. Mas logo pararam: "Tornou-se muito perigoso, eu tinha medo de ir para a prisão", explica um deles.

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As noitadas de debate podem acolher de 20 a até 100 pessoas. Mas, tudo é feito de forma discreta e, a cada vez, os perfis dos candidatos para o debate são cuidadosamente examinados antes de serem aceitos. Os organizadores sabem que todo cuidado é pouco.

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