"Charlie Hebdo abraçou agenda da extrema direita, mas ninguém deve ser fuzilado por suas opiniões", diz chargista
Em 7 de janeiro de 2015, o mundo foi abalado pelo ataque terrorista contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo. O atentado, que matou 12 pessoas, incluindo 8 integrantes da redação, reacendeu discussões sobre liberdade de expressão e seus limites. Dez anos depois, o cartunista brasileiro Carlos Latuff, conhecido por seu trabalho politicamente engajado e que também retratou o episódio em uma de suas charges, reflete sobre as consequências do ataque e o papel da charge e da sátira.
Carlos Latuff relembra o impacto da notícia do atentado ao Charlie Hebdo recebida por meio das redes sociais. "Minha reação inicial foi de surpresa, porque até então eu não tinha notícia de chargistas serem alvos de ataques dessa natureza", recorda.
Dias depois do episódio, Latuff criou uma charge, divulgada em veículos da imprensa nacional e internacional, no qual retratava sua visão do ataque cometido pelos irmãos Chérif e Said Kouachi: "Desenhei os dois atiradores disparando contra a sede do Charlie Hebdo. As balas atravessavam o prédio e atingiam uma mesquita na parte de trás, simbolizando que aquela ação teria consequências imprevisíveis contra a própria comunidade islâmica." Segundo Latuff, o atentado acabou alimentando a islamofobia já presente na Europa, particularmente na França.
O cartunista também critica o histórico editorial do Charlie Hebdo. "Não sou fã do trabalho deles. Um jornal que se pretende progressista abraçou um pensamento anti-imigrante e antimuçulmano. No momento em que ele resolveu não fazer uma crítica a respeito da manipulação da religião por parte de determinados líderes islâmicos, mas sim um ataque gratuito e covarde contra a fé islâmica, o Charlie Hebdo abraçou a agenda da extrema direita", afirma Latuff.
"Isso evidentemente não significa que a resposta a essas charges e ofensas tenha sido justa, obviamente que não. Qualquer pessoa de bom senso não pode aprovar que chargistas, ou quem quer que seja, tenha que ser fuzilado por conta de opiniões. É de se lamentar e de se condenar", acrescenta.
Para o chargista carioca, a sátira do jornal, em muitos casos, ultrapassou os limites do bom senso. "Se a intenção era simplesmente ofender, como fizeram ao retratar Maomé de maneira ofensiva, isso é infantil e irresponsável."
"Dois pesos e duas medidas"
Na entrevista à RFI, Latuff considera que existem "dois pesos e duas medidas" e uma "hipocrisia da sociedade europeia" em relação à liberdade de expressão. "O Charlie Hebdo não tratou com tanta veemência ou com tanta virulência, por exemplo, a questão palestina e Israel. Quem quer que critique o genocídio que está acontecendo em Gaza hoje é tachado de antissemita, de pronto. Na Europa, naquela época (do ataque ao Charlie Hebdo) e hoje, é muito fácil atacar muçulmanos e imigrantes. É um golpe baixo e fácil", diz.
Latuff comentou ainda porque não aderiu à campanha "Je suis Charlie" (Eu sou Charlie") lançada na França e que se expandiu por muitos países em solidariedade aos cartunistas e chargistas e em apoio ao jornal satírico após o atentado. "Dizer 'Je suis Charlie' significava dizer para mim na época que estava de acordo com a atitude do jornal de ter feito aquelas charges ofensivas contra Maomé e os muçulmanos. Eu lamentei e condenei o ataque. Mas é isso. Perderam a vida em nome da causa da extrema direita que até hoje é contra islâmicos, árabes e imigrantes, que é de se lamentar para um jornal que se propõe progressista", reitera.
Para Latuff, o atentado ao jornal satírico francês não teve impacto em seu trabalho de chargista, que tem foco em questões políticas. "O papel do chargista, seja numa democracia, seja numa ditadura, é de combate. O chargista é um artista de combate, da trincheira. Mas é preciso ter muita responsabilidade. Caso contrário, uma charge mal feita pode ajudar a criminalizar um segmento, como charges com ataques racistas, xenófobos e islamofóbicos, como tem feito o Charlie Hebdo na França", insiste.
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