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Com voluntários de 'escudo', jovem sai da cracolândia pela 1ª vez em 4 anos

Vista aérea da cracolândia, no centro de São Paulo (imagem feita em agosto de 2016) - Avener Prado/Folhapress
Vista aérea da cracolândia, no centro de São Paulo (imagem feita em agosto de 2016) Imagem: Avener Prado/Folhapress

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

08/02/2017 04h00

Na área conhecida como cracolândia --um quadrilátero 'informal' no centro de São Paulo onde frequentadores consomem e comercializam crack -- "João" compartilha com a reportagem do UOL um momento raro em sua rotina: a primeira caminhada à luz do dia para fora desta área em um período de quatro anos. 

A cracolândia é onde mora "João" (nome fictício) - ele mesmo um viciado em crack, que é apenas uma das drogas consumidas por lá.

Como outros frequentadores do local, “João” não costuma sair dali. A única exceção, relata, é para furtar, à noite. Este, entretanto, é um dia diferente: "João" sairá à luz do dia e reencontrará a cidade ao seu redor.

Acompanhado de voluntários que realizam atividades culturais com usuários da cracolândia, ele contou à reportagem do UOL, enquanto fazia a caminhada, como é viver nessas condições e como entrou no mundo do vício. 

O destino da caminhada, sugerido pelos voluntários, é a praça Roosevelt, na Consolação, distante cerca de dois quilômetros. Desde a reinauguração, em setembro de 2012, a praça tornou-se ponto de encontro de skatistas, moradores dos prédios vizinhos e clientes dos bares e teatros que ficam no seu entorno. Naquele dia, a praça Roosevelt estaria especialmente movimentada, ponto de atração natural de jovens num feriado, como era o caso. João nunca vira a praça depois da reforma.

Cracolândia de São Paulo - Avener Prado/Folhapress - Avener Prado/Folhapress
A cracolândia de São Paulo, vista de cima, em agosto de 2016
Imagem: Avener Prado/Folhapress

Como “João”, cerca de 500 pessoas convivem ou moram na região da cracolândia em função do vício ou do tráfico de drogas. Ele afirma que vive em um dos pequenos hotéis na região, onde trabalha como faxineiro, e que às vezes passa períodos de uma semana dentro do “fluxo” -- como é chamada a maior aglomeração de usuários de drogas na área. Nesses dias, dorme em uma das barracas de lona plástica ali instaladas, conhecidas como "malocas".

Pouco antes de iniciar a caminhada, ele reflete: “Eu devia ter colocado outra roupa, mas o Escobar [voluntário] me falou que era pra eu ficar como eu fico todo dia.”

Cracolândia de São Paulo, no dia seguinte a confronto com a PM, em janeiro de 2017 - Felipe Rau/Estadão Conteúdo - Felipe Rau/Estadão Conteúdo
Cracolândia de São Paulo, no dia seguinte a confronto com a PM, em janeiro de 2017
Imagem: Felipe Rau/Estadão Conteúdo

"Nós não somos monstros"

O rapaz de 27 anos veste uma camisa de futebol, calça de moletom, boné e chinelos. Diz que sua roupa está suja. Tem aparência de quem dorme na rua.

“Eu gosto de andar sujo porque eu me sinto bem no meio deles, sujo”, diz. “Eles chegam perto de mim, conversam. Nós não somos monstros.”

Ele acende o cachimbo de crack. Fuma a droga sentado na calçada. Em poucos minutos, levanta-se, agitado. Tira a camiseta, mexe nas calças como se estivessem apertadas, anda de um lado para o outro. Ao redor, o consumo de crack é recebido com indiferença (o usuário de crack, ao fumar uma pedra da droga, inala não apenas a cocaína, mas também uma substância derivada de sua pirólise -transformação por aquecimento. Segundo pesquisa realizada na USP em 2013, essa substância provoca a morte de neurônios de um modo muito mais agressivo do que aquele observado quando o usuário cheira ou injeta a cocaína. O crack é a mistura da pasta bruta de cocaína, bicarbonato de sódio e água).

Após consumir a droga, "João" fala a um dos voluntários: “Preciso de uma pinga urgente, senão eu vou passar mal”.

Alguém chega com uma lata de cerveja para ele, e agora todos podem seguir.

Enquanto o grupo vai se afastando, no começo da noite, da rua do Triunfo, o ponto de partida, “João” cumprimenta algumas pessoas pelo caminho: uma travesti esperando clientes em uma esquina, dois guardas municipais ao lado de uma viatura, em outra esquina mais para frente, até que ele diz: “passou a brisa, cara, passou a brisa”. O efeito da droga acabou em cerca de 15 minutos.

"Queria fazer alguma coisa que fosse errada"

Entrando na avenida Ipiranga, "João" conta mais sobre como iniciou o vício no crack. Diz que começou a usar a droga aos oito anos de idade.

“Eu cansava de ver na televisão os outros usando. Eu vendo aquela multidão, pensava: as pessoas devem passar o maior frio, a maior fome. Vou me enturmar no meio deles também. Eu queria fazer alguma coisa que fosse errada, pra ver qual é que era”, afirma.

O rapaz frequenta a cracolândia desde 2005, quando estava no meio da adolescência. Numa rotina de crimes, acabou sendo preso por latrocínio: assalto à mão armada com morte.

Não deve mais nada para a Justiça, de acordo com o que relata, mas sente medo de ser “enquadrado” pela Polícia Militar quando está longe da cracolândia, motivo pelo qual evita sair dali.

"Eu gosto de conversar, é bom desabafar"

Em frente ao edifício Copan, “João” diz: “não liga, porque isso faz parte do vício. Abaixar a cabeça e ficar olhando para o chão”. Algumas pessoas tinham acabado de passar por ele.

No trajeto todo até a praça Roosevelt, a entrevista foi interrompida algumas vezes por pequenas distrações.

“É estranho [aqui fora]. Ó o jeito do povo, tudo arrumadinho. E eu na pior”, ele comentou em certo momento.

“João” também estranhou ter que esperar o sinal de pedestres ficar verde para cruzar a faixa de segurança. “A gente [usuário de drogas] atravessa no vermelho mesmo.”

Pode-se dizer que ele estava à vontade para responder as perguntas, mesmo quando o assunto era a família. “Eu gosto de conversar, é bom desabafar.”

O rapaz conta que tem mulher e uma filha pequena, que moram perto da cracolândia, mas convive pouco com elas, e que parentes de sua mãe dão uma ajuda, todo mês, para as duas. Uma parte, ele reserva para as drogas.

cracolândia - Joel Silva/Folhapress - Joel Silva/Folhapress
Usuários da cracolândia em São Paulo, em dezembro de 2016
Imagem: Joel Silva/Folhapress

"Clínica não resolve problema de ninguém"

Ao chegar ao destino final do passeio -- a praça cheia de gente se divertindo -- , uma pergunta fez “João” parar e emudecer:

-- Você gostaria de sair da cracolândia?

“Vontade eu tenho, mas falar que vai me internar numa clínica é mentira. Clínica não resolve o problema nenhum de ninguém”, ele respondeu após alguns minutos.

“Vou ser sincero, não tenho opinião formada pra parar de usar droga, não tenho. Sou realista. Eu fico violento”, diz.

Nesses anos todos, “João” ficou seis meses sem consumir nenhum tipo de droga. Hoje, afirma, ele usa tudo o que aparecer.

“Lá dentro, [o controle] depende de cada um. Eu mesmo não parei [de usar drogas] por causa das oportunidades que foram abertas para mim. Eu já fui arrumar emprego e só levei tapa na cara. Eu desanimei, deixei quieto”, ele declara sobre passar praticamente todo o tempo na cracolândia.

Quando tinha uns 17 anos, “João” trabalhou como garçom e depois, como desenhista. Ali na praça, rodeado de muitos desconhecidos, ele disse se sentir “como um ninguém, como um objeto de parede que não tem utilidade nenhuma, como um tapete que você passa por cima e não dá significação nenhuma”.

Sobre o futuro: “É jogar o dado e ver no que dá. Eu queria paz. Queria curtir, beber, comer uns bagulhos legais, poder descansar de boa, no horário certo.”

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Aglomeração de barracas usadas para venda e uso de drogas à noite na cracolândia
Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

"Existem regras de comportamento"

Segundo o pesquisador Marcel Segalla Bueno Arruda, que visitou a região da cracolândia diariamente, durante dois meses, em 2013, enquanto fazia mestrado na USP (Universidade de São Paulo) sobre o consumo de drogas no local, a área é frequentada, de forma geral, por pessoas de baixa renda e com variada experiência de vida.

Arruda afirma que ex-presidiários representam um certo volume dentro da cracolândia, assim como os que fogem da violência doméstica. Fator comum entre os frequentadores, aponta ele, é o uso do crack, mas a relação com a droga é bastante individual: alguns compram a droga e a consomem em casa, por exemplo; outros fumam a pedra no “fluxo”; há os que compram os “ingredientes”, como a cocaína, para produzir o crack em outro local; e ainda os que usam a droga uma vez ao dia, somente no final de semana ou várias vezes por dia.

“É um coletivo humano, um espaço de lazer e de convivência. Existem regras de comportamento, um código de funcionamento. Há violência e furto como em qualquer outro lugar, e também há sanções para quem quebra as regras”, ele afirma.

"Atividades culturais servem como um escudo"

Os voluntários que acompanharam “João” nesta saída são integrantes do movimento A Craco Resiste, formado por coletivos interessados em proteger os frequentadores da cracolândia do que eles consideram uma ação violenta da Polícia Militar na área. Questionamentos das ações policiais ali são frequentes -- no último dia 17 de janeiro, por exemplo, a PM entrou em confronto com usuários de drogas no local; um policial ficou ferido, e oito pessoas foram detidas.

Procurada pela reportagem do UOL, por telefone e por e-mail para explicar e dar detalhes sobre as ações policiais realizadas na cracolândia e também sobre suas orientações aos frequentadores da área, a Polícia Militar de São Paulo não respondeu.

Desde o começo de 2017, praticamente todas as noites, integrantes do A Craco Resiste têm participado do que chamam de "vigília", muitas vezes dentro do “fluxo” (o local de maior concentração de pessoas), com práticas culturais. A ideia é envolver e inserir os usuários em atividades como futebol, roda de capoeira, roda de samba, exibição de filmes ao ar livre, churrasco.

"A atividade cultural funciona em alguns pilares. Um deles é levar gente que não é de lá para lá. Você cria vínculos, e a galera do 'fluxo' vai se envolvendo contigo. Além disso, se você está fazendo atividade cultural, a polícia não vai estourar lá, naquela hora", diz Raphael Escobar, 29, um dos participantes do movimento.

Artista plástico, Escobar trabalhou pelos últimos quatro anos em projetos sociais na região, e desde o fim de 2016 acompanha os frequentadores como voluntário.

"Quando você está na cracolândia, você tem o sambista, tem o cara que é formado na USP, o cara que trabalhou na Serra Pelada, o cara que ficou preso 30 anos no Carandiru e sobreviveu ao massacre [de 111 presos, em 1992]. Ali, o que não falta é gente viva e com muitas histórias", diz.

O movimento, apartidário e sem ligação com ONGs ou igrejas, já tem pronto o calendário de atividades para o mês de fevereiro. "O que a gente está fazendo não é projeto social. As atividades culturais servem como um escudo", ele defende.

“Não é uma questão só de segurança pública”

Toda mudança na administração municipal, na opinião de Escobar, gera desconfiança sobre "tentativas de limpeza social” na cracolândia.

Além da ação policial deste começo de ano, ele cita outros dois exemplos anteriores de iniciativas públicas naquela região: em 2012, na administração Gilberto Kassab (PSD), quando a Polícia Militar realizou uma operação de repressão ao tráfico e consumo de drogas, com dispersão truculenta de frequentadores; e em 2015, na gestão Fernando Haddad (PT), quando carroceiros foram retirados da área, com o argumento de que vendiam entorpecentes.

“Não é uma questão só de segurança pública, existem outras questões envolvidas”, ele afirma, apontando saúde, assistência social e emprego como frentes por onde a prefeitura deveria intervir.

Em resposta à reportagem do UOL sobre medidas previstas na gestão João Doria (PSDB) para a cracolândia, a prefeitura respondeu que “irá implantar, na região da Luz, o programa Redenção, em parceria com o Estado, com abordagem multidisciplinar, envolvendo agentes de saúde, assistência social, direitos humanos e de segurança pública”.

Não foram informados mais detalhes sobre a implantação do novo programa, mas, de acordo com a prefeitura, os grupos de trabalho têm até o início de março para apresentar suas propostas em cinco áreas: social, saúde, policial, urbanística e de zeladoria urbana.

Região tem cerca de 500 moradores

A atual administração da Prefeitura de São Paulo afirma não reconhecer oficialmente qual é o perímetro da cracolândia, mas quem frequenta a região diz que os traficantes e usuários de drogas se reúnem em quatro ou cinco quarteirões no bairro Campos Elíseos, nas proximidades da estação Júlio Prestes. O “fluxo” se concentra em parte da rua Helvétia, da alameda Dino Bueno e do Largo Coração de Jesus.

Em relatório divulgado no dia 31 de janeiro, a fundação Open Society estima que a cracolândia tenha cerca de 500 residentes –- muitos em situação de rua, desempregados, com perfil de uso abusivo de drogas e históricos de violência sexual e física. Regularmente, o local recebe a visita de aproximadamente 2.000 pessoas que consomem crack. A ONG foi fundada em 1979 pelo empresário George Soros e tem foco em direitos humanos, minorias e diversidade de opiniões.