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Vizinho da sede da Lava Jato, ex-empresário mora em casinha de madeira na rua

José Valsonir Gauer, ou Soni, que vive em uma casinha de madeira na avenida mais movimentada do centro de Curitiba, a 50 metros da sede da força-tarefa - Rafael Moro Martins/UOL
José Valsonir Gauer, ou Soni, que vive em uma casinha de madeira na avenida mais movimentada do centro de Curitiba, a 50 metros da sede da força-tarefa Imagem: Rafael Moro Martins/UOL

Rafael Moro Martins

Colaboração para o UOL, em Curitiba

18/03/2017 04h00Atualizada em 19/03/2017 01h08

José Valsonir Gauer, ou Soni, para quem o conhece, fez 60 anos no último dia 14. A data não passou em branco. Amigos foram à casa dele, levaram bolo, refrigerante e um presente. O diferente, nessa história, é onde vive Soni: uma casinha de madeira não maior que a de um cachorro grande, na calçada da avenida Marechal Deodoro, a mais movimentada do centro de Curitiba.

"O meu nome estava escrito no bolo. Nunca tinha ganhado um assim", contou ao UOL na quinta-feira (16) à tarde. Os amigos, nesse caso, são pessoas que trabalham nas dezenas de escritórios, lojas e bancos da região e se acostumaram a ver, e a gostar, do homem magro, de barba e cabelos brancos e longos, quase sempre com um cigarro na mão e comumente envolvido em alguma atividade em frente à improvisada e bem organizada residência.

Soni é querido por muito ao seu redor. Ao longo de uma hora de conversa, cumprimentou e foi cumprimentado por mais de uma dezena de passantes, de executivos engravatados a "carrinheiros" --termo local para os catadores de material reciclável.

Alguns pararam para prosear. Um rapaz lhe deu um sanduíche comprado num fast food. Outro lhe trouxe algumas facas para serem afiadas --é desse serviço, da venda de lápis (a R$ 1,50 cada um) e da construção de pequenos objetos em madeira que ganha algum dinheiro. "Faço uns R$ 400 por mês", contou.

Falência e depressão

Soni está na rua desde 2010. Até oito meses atrás, alternava a vida de sem-teto com períodos na casa do filho mais velho.

"Mas meu lugar não é lá. Sinto que atrapalho a privacidade deles. E também quero ter a minha", explica. Por isso construiu uma casinha com 1,20 metro de altura por um metro de largura e uns dois metros, se tanto, de profundidade. Botou-a sobre um carrinho de madeira, também obra dele, e a trouxe a pé até o centro de Curitiba --um percurso de cerca de 20 km.

"[Viver assim] É necessidade. E tenho vergonha de estar nessa situação", repetiu, algumas vezes.

Soni - Rafael Moro Martins/UOL - Rafael Moro Martins/UOL
Soni vive na rua há sete anos após falir sua empresa e ter depressão
Imagem: Rafael Moro Martins/UOL
Soni nasceu em Lages, principal cidade da serra catarinense. Cresceu em Guarapuava (252 km a oeste de Curitiba), onde estudou até o atual ensino médio. "Eu era sempre o primeiro ou o segundo da turma em matemática, mas um dos últimos em português. Só me faltou a faculdade."

Mudou-se para a capital em 1981. "Vim achando que faria meu pé de meia. Até fiz, só que ele rasgou", disse. "Quebrei. Eu era empresário da construção civil, tinha uma boa situação financeira. Mas não soube administrar o negócio. Levei muito calote. Aceitava muito fiado. Mas não fiquei devendo um centavo para ninguém. Pode escrever isso. Vendi casa, vendi carro", diz ele, contando que chegou a ter três veículos ao mesmo tempo, inclusive um Galaxie LTD, do qual fala com carinho.

A solidão está dentro de você. Pode ter mil pessoas em volta que você está só. Me sinto assim

Soni, ex-empresário e morador de rua

À falência financeira se somou um quadro de depressão, que se agravou com a separação da mulher, há 16 anos. Isso acabou por, finalmente, levá-lo a viver na rua, em 2010. De um médico que tem consultório num prédio comercial na avenida e se tornou um amigo, já recebeu inclusive uma receita com a medicação necessária para tratar a doença, mas nunca foi atrás do remédio, que é fornecido gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

"O alemão velho aqui é turrão", falou. Disse ver com ceticismo a psicologia, uma das opções de tratamento que lhe foram sugeridas. Mas afirma que conversar o ajuda a superar os piores momentos. "Hoje estou bem. Mas há dias em que estou aqui bem triste, com água nos olhos, e me tranco na casa. Melhoro quando vem alguém, conversa comigo", contou. Tem uma maneira própria de descrever sua doença. "A solidão está dentro de você. Pode ter mil pessoas em volta que você está só. Me sinto assim."

Banho em hotel quando sobra dinheiro

A vida na rua, obviamente, não é fácil. Soni usa o banheiro do terminal de ônibus do Guadalupe, a algumas quadras da calçada em que vive. "Se tiver uma emergência, tenho como me virar na casa mesmo", explicou. Quando sobra dinheiro, vai a um hotel da região tomar um banho. Completa a higiene com lenços umedecidos.

Costuma almoçar num restaurante mantido pela prefeitura no centro, que serve refeições a R$ 2. Diz que comerciantes da região já lhe franquearam acesso a marmitas, que ele diz recusar. "Tenho vergonha de pedir", justificou. Nas demais refeições, improvisa --o sanduíche que ganhou no início de tarde em que conversou com o UOL seria guardado para o jantar.

A casa já foi arrombada, pelos fundos --a porta é trancada a cadeado quando ele não está. "Foi logo depois do Natal. Levaram um par de tênis e outro de chinelos, além de um tanto de comida que eu tinha ganhado. Não fez falta. O que não aceito é a sacanagem de roubarem de quem já não tem quase nada."

É um homem cuidadoso. As cinzas e bitucas dos cigarros que fuma são recolhidas num pequeno pote --nada vai para o chão. Periodicamente, varre a calçada.

Todo domingo, Soni desce alguns quarteirões até o terminal do Guadalupe, de onde partem os ônibus que ligam Curitiba às cidades ao norte e a leste na região metropolitana. Ali, toma a condução para uma cidade da região metropolitana, onde passa o dia com o filho caçula. Mas sempre volta para a Marechal. "E não adianta meu filho insistir."

Fã de Teixeirinha e vizinho da Lava Jato

Quando não está abatido pela depressão, Soni é bom de conversa. Ao longo da entrevista, propôs algumas vezes o tema da conversa. Falou de seu amor pelo rádio --enumerou seus narradores esportivos preferidos-- e pela Copa de 1970 ("Nunca houve outra como aquela. Sei todos os resultados, me lembro de todos os jogos, de que o Brasil começou perdendo, para a Tchecoslováquia".)

Fã de música e cinema, tem admiração particular pelo cantor e ator gaúcho Teixeirinha. "Tem filmes que parecem que são feitos para mim. Por exemplo: 'O Pobre João', do Teixeirinha. Vi umas 50 vezes", diz, se referindo a um longa-metragem de 1974 produzido e estrelado pelo cantor gaúcho. Tal qual os discos, as dezenas de filmes do gaúcho --que invariavelmente interpretava a si mesmo-- tinham público fiel e numeroso no Sul.

Gosta de falar de política. Foi eleitor e ainda é admirador do tucano Fernando Henrique Cardoso. "Ele acabou com a inflação." Não gosta do petista Luiz Inácio Lula da Silva ("É só um agitador"), nem da sucessora Dilma Rousseff. Mas considera que Michel Temer (PMDB) traiu a ex-presidente ao ocupar-lhe o lugar.

Também é fã de Sergio Moro e da Operação Lava Jato. "Nota dez", disse, mas se surpreendeu ao ouvir da reportagem que a sede da força-tarefa fica a não mais de 50 metros dali, na quadra anterior da Marechal Deodoro. "Não sabia. De repente já até passaram por aqui."

Graças ao rádio, que ouve em casa, Soni está a par dos escândalos recentes da política nacional. "Vi que tem uns ministros envolvidos agora", falou, se referindo aos nomes presentes na lista de pedidos de investigação preparada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.

Recomeço com as mãos

É na habilidade como artesão --a mesma que usou para construir a casinha em que vive atualmente-- que Soni aposta para dar a volta por cima. Para isso, disse que precisa só de um lugar em que se instalar.

"Aqui não tenho como usar ferramenta elétrica, furadeira, nada. Ficou tudo na casa do meu filho. Por isso levo muito tempo para fazer um trabalho simples. Não rende", explicou. Na casinha, Soni dispõe de uma pequena serra manual, pincéis, tintas e um par de limas (que usa para afiar as facas).

"Meu sonho é que me chamassem para cuidar de uma chácara. Nem cobro salário, só que paguem luz e água. Daí teria tempo e condições para fazer meu trabalho de artesão", falou. "Seria um recomeço."