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Sobrevivente da Kiss relata angústia com júri de réus: 'não durmo há 1 mês'

Sobrevivente da tragédia na boate Kiss, Gabriel Rovadoschi, 27 anos, não consegue dormir direito às vésperas de julgamento do caso - Arquivo pessoal
Sobrevivente da tragédia na boate Kiss, Gabriel Rovadoschi, 27 anos, não consegue dormir direito às vésperas de julgamento do caso Imagem: Arquivo pessoal

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

28/11/2021 04h00

Há pouco mais de um mês, o psicólogo Gabriel Rovadoschi, 27 anos, não consegue dormir direto. Ou passa as noites em claro ou acorda no susto, normalmente com uma lembrança da trágica noite de 27 de janeiro de 2013. Na data, 242 pessoas morreram e outras 636 ficaram feridas por conta de um incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), a 288,6 km de distância de Porto Alegre.

"Não são sonhos, são lembranças, não estou tendo sonho ultimamente porque não estou dormindo. Às vezes acordo e eu acho que são as portas (da boate) se abrindo. (...) Uma coisa que me surge são os primeiros gritos, eu não lembro o que diziam, fiz escolha de parar de ouvir, foi o momento que me centrei em mim mesmo numa forma que eu não sei nem descrever", conta o psicólogo.

Nos últimos dias, as lembranças têm ficado cada vez mais persistentes. Uma das explicações é a proximidade do julgamento dos quatro réus - acusados de serem os responsáveis pelo incêndio - que ocorre na próxima quarta-feira (1º) na capital gaúcha. Assim como outros sobreviventes e familiares das vítimas, ele irá para Porto Alegre acompanhar de perto o Tribunal do Júri.

boate, kiss - Marcos Borba/ Associação dos Parentes de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria - Marcos Borba/ Associação dos Parentes de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria
Fachada da boate Kiss, em Santa Maria (RS), onde 242 pessoas morreram na noite de 27 de janeiro de 2013
Imagem: Marcos Borba/ Associação dos Parentes de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria

"Vem sendo uma crescente de lembranças, uma crescente de expectativas, sonhos horríveis, falta de sono, agitação, ansiedade. Eu digo não só por mim, mas por mais sobreviventes que tem relatado isso. Cada um apresenta de uma maneira. Isso é algo que surge em mim constantemente."

Naquela noite, Rovadoschi ia pela segunda vez em uma boate. Tímido e introvertido, preferia o conforto de casa e passar as horas livres jogando no computador. Mas resolveu aceitar o convite de colegas e foi em uma festa de alunos da comunicação social na Kiss, no dia anterior à tragédia. Lá ficou com uma garota que estudava zootecnia na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), que o convidou a voltar na noite seguinte, quando ocorreria na Kiss a fatídica festa "Agromerados".

Ainda na fila, o estudante ficou impressionado com a quantidade de pessoas, que superava o registrado dentro da casa noturna na noite anterior. Na calçada, reencontrou a estudante de zootecnia, que não precisou esperar, já que era a festa da turma dela. Logo depois, deparou-se com quatro ex-colegas do Ensino Médio e o grupo entrou junto na Kiss.

"Lá a gente andou por tudo e era muito muito apertado. Demorava para dar voltas. Toda a boate estava cheia, e assim eu fui conhecendo os lugares que eu não havia andado na noite anterior", conta Rovadoschi.

Todos os olhares se voltaram para o palco

Após circularem pela boate, os jovens decidiram parar perto de uma mesa de DJ, que estava vazia. O local fica à esquerda de quem entra e em diagonal ao palco. Minutos depois, dois amigos de Rovadoschi decidiram dar mais uma volta. Cansados, ele e outros dois decidiram ficar.

"Passou poucos minutos que eles foram, a música parou, e aí ficou estranho. Foi o primeiro alerta que alguma coisa estava acontecendo. Lembro das cabeças virando para o mesmo lugar, em direção ao palco, tentando ver alguma coisa naquela região, e nesse meio tempo escurinho escutei um murmurinho de que era briga."

O estudante tentou ver o que era, mas não conseguiu. "Já tinha gente sinalizando para sair. Nisso, se abriu um vão, e eu só fui. Eu estava alinhado com a porta de entrada, foi ali que o povo parou, travou, porque as portas estavam fechadas. Dali começou um pouco mais de tumulto, empurra-empurra, de gritaria e eu não tinha visto fogo, e foi poucos segundos depois que a fumaça chegou. No primeiro instante que ela chegou em mim, ela era uma fumaça branca."

"Não vou gritar porque preciso desse ar"

Naquela hora, Rovadoschi pensava que a fumaça poderia ser gás lacrimogêneo usado para conter a briga. "Só que no instante que esse pensamento se encerrou na minha cabeça, a fumaça preteou e aí eu me dei conta que era um incêndio."

Em meio à multidão, o jovem se lembrou de instruções de um programa de televisão e já puxou a camiseta para tapar a boca e o nariz. Também segurou a respiração. "Eu pensei: 'eu não vou gritar porque já tem gente gritando perto de mim e eu preciso desse ar', e assim eu segui. Logo em seguida, as portas se abriram e começou fluxo de pessoas, e eu estava no meio do fluxo, me segurando e tentando não derrubar ninguém e tentando ficar em pé e andar a passos curtos. Não dava para ver nada que estava em volta porque era esmagado de gente."

Naquele momento, a fumaça começava a tapar o teto da casa noturna. "Não dava para ficar com a cabeça levantada. O olho ardia, a garganta doía quando respirava." Por duas vezes no curto caminho que naquele momento parecia interminável, o jovem pensou que fosse cair e ser pisoteado, como ocorreu com muitas vítimas. Mas não havia espaço para cair, segundo ele. Ele já havia passado pela primeira porta - havia um espaço entre elas - e mesmo a poucos metros da saída, achou que não iria sobreviver.

"Eu pensei: 'Não vai dar'. Porque eu não via a outra (porta). Sabia que eram duas etapas, mas eu não via a outra. Nisso eu baixei a cabeça por causa da camisa e, quando levantei novamente, tive a impressão de ver alguma luz de poste pela fumaça. Daí eu fui, só fui." Era, finalmente, a saída.

Rovadoschi teve de escolher em quem pisar

A calçada já estava repleta de pessoas caídas e, naquele instante, ele precisou fazer uma escolha. "Foi um momento na minha cabeça que durou muito tempo, parece que ali o tempo parou e eu pude olhar em volta e escolher em quem eu queria pisar porque não tinha onde pisar que eu não fosse pisar em alguém para sair. E eu lembro de tomar a decisão de pisar na pessoa que tinha as costas mais largas para machucar menos, senão eu iria cair também."

Do lado de fora da boate, puxou o celular e avisou o que tinha acontecido para sua mãe, que foi às pressas para o local. Enquanto esperava no meio-fio da calçada, viu uma cena que o fez mudar de carreira. Na época, ele estava no terceiro semestre de jornalismo.

"Eu estava desnorteado, enjoado e ao olhar para cima da rua e vi um cara filmando do celular, no meio da rua. E aquela cena é muito emblemática para mim, do que eu estava fazendo da minha vida. (Eu pensei) Se eu queria ficar desse lado ou se eu queria partir para prestar alguma ajuda. Então eu me fiz aquela pergunta naquele momento e levantei para procurar meus amigos", conta Rovadoschi que trancou o curso para estudar psicologia.

Dos quatro amigos, dois sobreviveram, mas ficaram dias em coma. A jovem que ele conheceu no dia anterior também sobreviveu, mas com ferimentos no corpo. Dali, partiram para o pronto-socorro do Patronato, onde ele e a mãe levaram mais dois sobreviventes - além da garota. O jovem saiu da Kiss praticamente ileso e convive há mais de oito anos com sentimento de culpa.

"Naquela época eu fiquei devastado com tudo. Por muito tempo achei que alguém deveria ter saído no meu lugar, porque eu não merecia ter saído. Tinha muita gente melhor que eu para sair. É muito ruim viver com isso. Eu venho lidando com muita culpa desde então, por tudo que se passou. Hoje eu me digo que não tenho culpa do que aconteceu, não tenho culpa do que pude fazer, fiz o que pude, nas condições que tinha, recursos que tinha."

"Vi as pessoas morrendo ao meu lado no hospital", conta sobrevivente

A proximidade com o julgamento também tem deixado a auxiliar de disciplina Amanda Knackfuss, 25 anos, ainda mais ansiosa. "Tenho pensamentos em relação àquela noite. Na verdade, a sensação que tenho é de impunidade, demorou muito tempo para acontecer, eles devem pagar pelo que aconteceu."

Amanda foi para a Kiss acompanhada de um amigo. Para ela, o ambiente da boate já era familiar. Por lá, acabou encontrando conhecidos de outras festas e ficou na área VIP da casa. O grupo era formado por cerca de 10 pessoas, mas apenas três sobreviveram, contando com ela e o amigo.

sobrevivente, kiss - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Amanda Knackfuss, 25 anos, sobrevivente da tragédia que deixou 242 mortos na boate Kiss
Imagem: Reprodução/Instagram

Na época, a jovem tinha 16 anos, era emancipada e ainda cursava o Ensino Médio. Assim como Rovadoschi, ela ficou impressionada com a quantidade de pessoas que estava no local. "Não tinha livre circulação, meio que tinha que ir se empurrando, estava bem lotado."

Poucos minutos antes do incêndio começar, Amanda ia acompanhar outras garotas para dançar em frente ao palco. Porém, acabou ficando com vontade de ir ao banheiro. No meio do caminho, reencontrou o amigo e acabou não indo. Logo em seguida, o boato de uma briga se espalhou pela boate. Em segundos, no entanto, tudo mudou.

"Foi tudo muito rápido, as luzes se apagaram, senti cheiro de fumaça, nisso já começou a correr muita gente, eu saí depois. Era muito difícil de conseguir sair, eu estava de salto alto e esse amigo me carregou, achei que ia ser pisoteada, foi empurra-empurra muito forte."

"Para mim era certo que eu morreria"

Do lado de fora, recebeu a ajuda de uma desconhecida que ofereceu água e ainda entrou em contato com o pai da jovem. Foi levada para o Hospital de Caridade, onde foi encaminhada para a nebulização, um método que serve para levar medicamentos às vias respiratórias de maneira mais rápida e eficiente do que os remédios orais. Ao lado dela estavam outros sobreviventes, que recebiam os mesmos cuidados.

"Eu via as pessoas morrendo na minha volta. Para mim era certo que eu morreria. Eu até cheguei a me despedir do meu pai. Eu tentava não dormir, ficar consciente", explica.

Após um dia de internação, Amanda recebeu alta. Mas ainda hoje enfrenta as consequências da tragédia. "Eu desenvolvi TOC (Transtorno Obsessivo-compulsivo) em relação ao fogo, ao fogão, ou a qualquer coisa que possa explodir. Não é uma coisa normal e eu perco tempo com isso. Eu fiquei muito mais ansiosa e passo mal com sirene de Bombeiros, com cheiro de fumaça."

Há dois anos, ela deixou Santa Maria e foi morar no litoral norte do estado. "Foi bem libertador sair de Santa Maria, me sentia muito mal lá, me sentia bem cabisbaixa. A cidade já não era mais a mesma depois da Kiss."