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Assassinato, massacre, abuso sexual: Vale do Javari é marcado por violência

Operação desmantela garimpo e destrói 60 balsas no Vale do Javari, na fronteira com o Peru, em 2019 - Funai
Operação desmantela garimpo e destrói 60 balsas no Vale do Javari, na fronteira com o Peru, em 2019 Imagem: Funai

Gabriel Dias

Colaboração para o UOL

15/06/2022 23h11

A morte do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips escancarou os problemas de segurança, proteção ambiental e respeito aos povos originários no Vale do Javari, na Amazônia, a segunda maior terra indígena do Brasil. Os dois estavam desaparecidos desde 5 de junho.

Localizada na fronteira com o Peru e a Colômbia, com acesso restrito por vias fluviais e aéreas, a região de 85 mil km² (maior que a Áustria) abriga 6.300 indígenas de 26 grupos diferentes, 19 deles isolados —a maior concentração do mundo.

No entanto, dados dos últimos anos apontam para uma guinada na ocupação da área demarcada e no avanço do tráfico de drogas, da caça clandestina, da extração ilegal de madeira e da mineração de ouro, que ameaçam povos como os Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo.

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Jornalista Dom Phillips e indigenista Bruno Araújo
Imagem: Divulgação

Relembre alguns episódios de violência na reserva:

Massacre de indígenas

Em setembro de 2017, o Ministério Público Federal do Amazonas confirmou o assassinato de ao menos 20 indígenas de uma aldeia isolada do Vale do Javari por garimpeiros ilegais do município de São Paulo de Olivença, na fronteira com Peru e Colômbia. Em seguida, o MP recebeu a denúncia de outro assassinato de indígenas da comunidade isolada dos Warikama Djapar.

Foi esse massacre que motivou uma expedição da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do Exército Brasileiro à reserva em 2017, quando foram descobertos garimpeiros ilegais atuando dentro e fora da área habitada por grupos de indígenas isolados, dos quais não se conhece a língua ou etnia.

Dez balsas de garimpo foram destruídas, houve apreensão de ouro, equipamento e armas. Os garimpeiros, em número não apurado, detidos no local e, em seguida, soltos com ordem de deixar a região.

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Rio Itaquaí na região da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM)
Imagem: BRUNO KELLY/AMAZÔNIA REAL

Base de proteção é atacada

Entre novembro de 2018 e setembro de 2019, um posto da Funai que busca controlar o acesso ao território foi alvo de ataques armados. A base funciona como guardiã de uma das principais entradas por rio no Vale do Javari.

Os principais suspeitos pelos ataques eram garimpeiros, ladrões de madeira e caçadores que buscam quelônios e peixes sob risco de extinção, como o pirarucu.

Em 6 de setembro de 2019, o colaborador da Funai e funcionário da mesma base atacada no sábado, Maxciel Pereira dos Santos, foi assassinado a tiros enquanto guiava sua moto na rua mais movimentada de Tabatinga (AM), também na tríplice fronteira.

Logo em seguida, em outubro de 2019, Bruno Pereira foi demitido do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Funai pelo atual presidente do órgão, o delegado Marcelo Xavier, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Até hoje as autoridades não solucionaram o crime.

Existem quatro bases da Funai na região (nos rios Ituí, Curuçá, Quixito e Jandiatuba) que, segundo a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) são "vitais aos indígenas de recente contato e aos isolados que necessitam da proteção do governo federal, em conformidade com leis específicas e vigentes na atual política indigenista oficial".

Maxciel fazia o mesmo trabalho que o Bruno faz, ressaltou Yura Marubo, assessor jurídico da Univaja: "Apreensão, detenção, apresentação, queimar equipamentos, prender material de pesca e caça. Ou seja, não é um trabalho dessas instituições porque é um trabalho de polícia, e por conta disso criou-se ódio e muitos inimigos."

Invasão à comunidade Jarinal

Em abril deste ano, a Unijava e o Centro de Trabalho Indígena (CTI) receberam denúncias de uma invasão de garimpeiros à comunidade de Jarinal, também na Terra Indígena. Eles participaram de uma festa em que indígenas foram abusadas sexualmente e, segundo o CTI, os indígenas foram forçados a beber gasolina com água e álcool etílico com suco.

Na comunidade Jarinal vivem 160 pessoas do povo Kanamari e 47 indígenas Tyohom-dyapa, povo de recente contato que nas últimas décadas sofreu um forte decrescimento populacional por um histórico de doenças e conflitos.

As denúncias foram encaminhadas pelo Conselho Indígena dos Kanamari do Juruá e Jutaí (Cikaju) e pela Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja).

Chegada de missionários

Já Atalaia do Norte, para onde se dirigia a dupla antes de desaparecer, chama a atenção pela quantidade desproporcional de igrejas e missionários. Na pequena sede da cidade, de 20 mil habitantes, há pelo menos 15 denominações religiosas.

A cidade é a porta de entrada da Terra Indígena Vale do Javari e atrai missionários dos EUA, do Canadá, da Espanha, da Argentina e de outras regiões do Brasil.

A disputa pela "fé" dos habitantes acontece há décadas, mas se acirrou em 2020, quando Bolsonaro nomeou o pastor, antropólogo e ex-missionário Ricardo Lopes Dias para a coordenação-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio), no lugar de Bruno Pereira.

A escolha de um religioso fazia parte de uma estratégia bolsonarista de abandonar a atual política indigenista, que proíbe o contato com povos que desejam permanecer isolados e abrir o caminho para as missões evangélicas. Dias deixou o cargo em novembro de 2020, após duras críticas.

A resistência aos missionários tem sido liderada pela Univaja, que já obteve diversas decisões favoráveis na Justiça. Foi a Univaja que comunicou o desaparecimento do indigenista e do jornalista.

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Terra Indígena do Vale do Javari
Imagem: Funai

Tráfico de drogas e crime ambiental

O isolamento também tornou a região atraente para os traficantes de drogas, que aproveitam a ausência do Estado e uma fronteira pouco vigiada entre países-chave para o narcotráfico —por ali passa a rota da cocaína produzida no Peru e contrabandeada para o Brasil, de onde segue, em parte, para a Europa.

A comunidade São Rafael, onde Bruno teve a última reunião antes de sumir, é conhecida por sofrer influência financeira de traficantes de drogas, garimpeiros e demais exploradores que invadem o território preservado.

Nos últimos anos, o território viu um aumento "enorme" na extração ilegal de madeira, na mineração de ouro e na caça clandestina, alertou a Survival International. "As invasões de terra e a violência associada a essas atividades ilegais representam uma grave ameaça", afirmou.

Segundo o sertanista Sydney Possuelo, presidente da Funai nos anos 1990 e a maior referência nacional em estudos sobre povos isolados, é pela porteira do Vale Javari que os invasores entram, descendo os rios Ituí e Itaquaí e chegando ao coração da terra indígena.

"É quase uma área internacional, perto da fronteira. Tem narcotráfico, cocaína. Por lá, mora todo um pessoal que tem interesse na terra indígena, principalmente madeireiros, pescadores e caçadores. São esses interesses que levantam aquela economia predatória da região. Todos que estão ali permanecem constantemente ameaçados há anos", explicou em entrevista ao Estadão Conteúdo.

Na avaliação de Possuelo e de outros líderes indígenas, como Beto Marubo, "gangues organizadas" de garimpeiros e caçadores ilegais estão "saqueando" as florestas e rios da região, porque se sentem protegidos pela impunidade.

As ameaças, dizem eles, se aprofundaram a partir de 2019, depois que o presidente se colocou claramente desfavorável à demarcação. "Os invasores se sentiram empoderados e se tornaram mais agressivos", disse Marubo, que perdeu a conta de quantas denúncias já encaminhou a Polícia Federal e Ministério Público.

A invasão foi confirmada também por Fabio Ribeiro, coordenador-executivo do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. "Tem questões envolvendo o narcotráfico, a atividade de madeireira, de pesca ilegal e garimpo, e a organização indígena está nesse enfrentamento contra a invasão das terras."

O próprio Bruno declarou em dezembro do ano passado: "Não era assim há alguns anos", disse. "Os invasores tinham medo dos índios e, especialmente, da Funai. Agora eles parecem se sentir mais à vontade, por conta da postura permissiva do poder público. Os indígenas querem enfrentar e não é fácil convencê-los a não entrar em conflito."

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a região viveu um crescimento de 9,2% na violência letal entre 2018 e 2020 decorrente da disputa entre facções criminosas somada aos crimes ambientais.

Além disso, jornalistas que trabalham para meios de comunicação regionais na Amazônia foram assassinados nos últimos anos e a imprensa diminuiu a cobertura das atividades criminosas. (Com agências internacionais e Estadão Conteúdo)