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Em Bruxelas, mentor jihadista ensinava "islamismo bandido" a jovens revoltados

Najim Laachraoui, 25, é apontado como discípulo de Khalid Zerkani e mentor dos atentados de Bruxelas - Polícia Federal belga/ AFP
Najim Laachraoui, 25, é apontado como discípulo de Khalid Zerkani e mentor dos atentados de Bruxelas Imagem: Polícia Federal belga/ AFP

Andrew Higgins e Kimiko De Freytas Tamura

Em Bruxelas (Bélgica)

12/04/2016 13h32

Ele morava sob as vigas de um pequeno apartamento num sótão no bairro de Molenbeek, em Bruxelas, e ficou conhecido por alguns seguidores como o Papai Noel da jihad. Tinha barba espessa e barriga e oferecia generosamente dinheiro e conselhos aos jovens muçulmanos ávidos para combater na Síria e na Somália ou para causar destruição na Europa.

Quando a polícia belga apreendeu o computador desse homem, Khalid Zerkani, em 2014, descobriu uma coleção de literatura extremista, incluindo textos intitulados "Trinta e oito maneiras de participar da jihad" e "Dezesseis objetos indispensáveis para ter antes de ir à Síria".

Em julho passado, juízes belgas o condenaram a 12 anos de prisão por participação em atividades de uma organização terrorista e o declararam o "arquétipo de um mentor subversivo", que espalhava "ideias extremistas entre jovens ingênuos, frágeis e agitados".

Mas somente meses depois disso ficou clara a verdadeira escala do trabalho diligente de Zerkani nas ruas de Molenbeek e outros locais. A rede que ele ajudou a abastecer surgiu como um elemento central nos ataques de Paris e Bruxelas, assim como de um na França que as autoridades disseram ter desbaratado no mês passado.

"Zerkani perverteu toda uma geração de jovens, especialmente no bairro de Molenbeek", disse em fevereiro o promotor federal belga Bernard Michel.

Durante o julgamento, Zerkani, 42, negou qualquer envolvimento em terrorismo. Seu advogado em Bruxelas, Steve Lambert, não quis fazer comentários para esta reportagem.

Mas documentos do tribunal e entrevistas com moradores e ativistas de Molenbeek, assim como autoridades de segurança belgas, sugerem que ele tinha conexões diretas ou indiretas com várias figuras cruciais que hoje estão mortas ou presas em conexão com o massacre de novembro em Paris, que matou 130 pessoas, e os bombardeios no mês passado em Bruxelas, que mataram 32.

Por exemplo, Mohamed Abrini, um ex-morador de Molenbeek que, segundo as autoridades belgas, confessou ser "o homem de chapéu" filmado pelas câmeras de segurança junto com os homens-bombas no aeroporto e que mais tarde escapou com vida.

Seu irmão mais moço, Souleymane, viajou à Síria com a ajuda de Zerkani, segundo autoridades de segurança que falaram sob a condição do anonimato porque não estavam autorizadas a fazê-lo. O irmão teria morrido lá em 2014, combatendo com o Estado Islâmico.

Reda Kriket, outro veterano no conflito na Síria que foi preso na França no mês passado em conexão com o ataque abortado, ficou no apartamento de Zerkani durante algum tempo e lhe emprestou seu Mercedes com matrícula francesa, segundo a promotoria.

Investigadores belgas dizem que Abdelhamid Abaaoud, um morador de Molenbeek que comandou os ataques de novembro em Paris, foi discípulo de Zerkani. Najim Laachraoui --que as autoridades suspeitam ter sido o fabricante das bombas nos atentados de Paris e Bruxelas-- também teria ligações com seu círculo.

Hawa Keita, uma imigrante do Mali em Bruxelas, disse que seu filho, Yoni Mayne, se radicalizou em questão de meses sob a influência de Zerkani. (Ela acredita que seu filho morreu lutando na Síria em 2014.)

"Ele é um feiticeiro", disse ela, em seu apartamento num grande edifício em Bruxelas, sobre Zerkani, que hoje está preso. "Ele é Satã."

Em Molenbeek, o papel de Zerkani --um homem sombrio, mais versado nas coisas da rua do que da mesquita-- ajuda a explicar por que um bairro pequeno e não muito pobre da capital belga continua surgindo nas investigações sobre terrorismo.

Ele também salienta uma mudança acentuada na última década, dos debates teológicos muitas vezes antiquados de uma geração anterior de jihadistas ligados à Al Qaeda para o que Hind Fraihi, que escreveu um livro sobre Molenbeek, chamou de "islamismo bandido".

Fraihi, uma belga de origem marroquina, disse que quando começou a pesquisar em Molenbeek, há mais de dez anos, a cena radical era dominada por clérigos extremistas versados em textos religiosos. Isto havia mudado sob a influência da propaganda do Estado Islâmico, disse ela, para um empreendimento criminoso conduzido pela "sinergia entre o banditismo e o islã".

O EI recruta entre "bandidos e gângsteres porque precisa deles por seu conhecimento de armas, de esconderijos e do submundo", disse Fraihi. "Misture isso com islamismo e é o que temos em Molenbeek."

Alguns situam as raízes do radicalismo em Molenbeek nos anos 1990, quando Bassam Ayachi, um ex-dono de restaurante franco-sírio, criou o Centro Islâmico Belga, uma mesquita improvisada que promovia a versão dogmática salafista da religião. Os moradores e algumas autoridades municipais advertiram várias vezes as autoridades federais de que estava abrigando extremistas.

Philippe Moureaux, que foi prefeito de Molenbeek de 1993 a 2012, disse que ao conhecer Ayachi "ficou claro que era um extremista", mas que ele considerou isto uma responsabilidade do serviço de segurança federal belga, e não de autoridades municipais como ele.

Johan Leman, um antropólogo e assistente social em Molenbeek, disse que deu o alarme sobre as atividades do centro, mas não recebeu resposta --mesmo depois que se soube que Ayachi oficiou o casamento de um militante da Al Qaeda que participou do assassinato em setembro de 2001 de Ahmad Shah Massoud, líder guerreiro afegão adversário de Osama Bin Laden.

Leman, que participava da comissão antidiscriminação do governo, moveu um processo acusando o Centro Islâmico de promover opiniões antissemitas e antiamericanas. O tribunal decidiu em 2006 que o centro havia se dedicado ao discurso de ódio, disse ele. Mais ou menos nessa época, a polícia belga vasculhou o apartamento de Ayachi, apreendendo computadores e documentos.

Ayachi mudou-se mais tarde para a Síria com seu filho, que depois morreu em batalha contra forças do governo. Ayachi não respondeu a um convite para fazer comentários.

Zerkani, um marroquino que se tornou residente na Bélgica em 2002, movia-se nas bordas do círculo de Ayachi, mas não chamava muito a atenção, segundo pessoas de seu bairro. Enquanto o Centro Islâmico havia defendido uma forma ascética e rígida do islã que não atraía os jovens que gostavam de beber e se divertir à noite, Zerkani, segundo investigadores belgas, conseguia superar a divisão ao canalizar as energias criminosas dos jovens rebeldes.

Entre esses recrutas de Zerkani, segundo os investigadores, estavam Abaaoud, que foi morto alguns dias depois dos atentados de Paris quando policiais franceses invadiram seu esconderijo, e Salah Abdeslam, um ex-traficante de drogas e dono de bar suspeito de ser o arquiteto dos ataques em Paris, que foi capturado em Molenbeek no mês passado, após quatro meses desaparecido.

Zerkani nasceu em Zenata, uma área no norte do Marrocos habitada pela minoria étnica berbere, muitas vezes rebelde, e passou tempo na Espanha e na Holanda antes de se mudar para a Bélgica quando tinha 28 anos.

Em Bruxelas, seus comparsas incluíam defensores da Al Shabab, um grupo militante da Somália afiliado à Al Qaeda. Investigadores belgas disseram que ele furtava em lojas e cometia outros pequenos crimes antes de se tornar um eficiente recrutador para o EI.

Um investigador belga de terrorismo, falando sob a condição do anonimato, disse que não está claro como Zerkani se tornou um agente confiável do EI e seus antecessores, e que só agora está ficando clara a extensão de seu envolvimento com pessoas ligadas a complôs.

Uma teoria é que Zerkani foi recomendado à liderança do grupo militante na Síria por Fatima Aberkan, uma amiga da mulher do militante da Al Qaeda que matou Massoud, o chefe guerreiro afegão.

No julgamento em 2015 que apresentou Zerkani, um tribunal belga sentenciou Aberkan a cinco anos de prisão por participação em uma organização terrorista; ela e cinco de seus filhos --três homens e duas mulheres-- passaram algum tempo na Síria com o EI, segundo a promotoria.

Não há registro de viagens de Zerkani à Síria. Mas promotores disseram que pelo menos 18 pessoas com quem ele teve contato regular foram lutar lá entre meados de 2012 e 2014.

Autoridades de segurança belgas e pessoas que conhecem Zerkani disseram que ele havia afirmado à juventude delinquente de Molenbeek que antigas condenações criminais não eram um obstáculo para a causa islâmica, mas uma base vital. Em seu julgamento, segundo o sumário do evento feito pelos juízes, testemunhas afirmaram que ele havia pregado que "roubar dos infiéis é permitido por Alá" e era necessário para financiar viagens às "zonas da jihad".

Ele foi preso com 4.397 euros (cerca de R$ 17,7 mil) e US$ 1.235 (R$ 4.991), assim como dinheiro de Cingapura, Marrocos e outros seis países. A polícia também apreendeu passaportes roubados e encontrou diversos telefones celulares, computadores e um equipamento para burlar alarmes de lojas.

Ele tinha vultosas faturas de telefone, tendo feito 47 ligações para contatos do EI na Síria e outros 89 na Turquia em apenas dez dias em dezembro de 2013, segundo documentos do tribunal.

Os investigadores se esforçaram para equiparar essas descobertas com o fato de que Zerkani não teve emprego conhecido desde 2008, mas durante anos distribuiu dinheiro a combatentes voluntários.

Zerkani disse às autoridades que tinha trabalhado "no negro" --na economia paralela--, negociando "objetos diversos". Mas equipes de vigilância relataram que nunca o viram vender nada.

Promotores belgas disseram em uma reportagem que Zerkani tinha conseguido a obediência de jovens rebeldes ao "progressivamente cortá-los de seus ambientes anteriores e de suas famílias, escolas e relações sociais na Bélgica". A maioria tinha entre 15 e 20 anos menos que ele e compartilhava sua origem marroquina.

"Eles pegam norte-africanos porque conhecem como suas cabeças funcionam", disse Bachir M'Rabet, um jovem advogado de Molenbeek. Recrutadores como Zerkani, acrescentou ele, "não procuram um turco ou um albanês porque não são culturalmente próximos".

Mohamed Karim Haddad, irmão de um acólito que partiu para a Síria, descreveu Zerkani como "um charlatão que, por uma causa ruim, engana jovens ou homens que são socialmente instáveis".

O filho de Keita, que hoje teria 25 anos, foi condenado por ligações com o tráfico de drogas em Bruxelas em 2013. Mas sua mãe disse que foi só depois que ele começou a sair em Molenbeek que demonstrou interesse pela Síria e criticou a mãe por não ser suficientemente devota.

Zerkani não instruía esses recrutas com justificativas teológicas antiquadas à violência, como Ayachi ou o Centro Islâmico, mas usava algumas ideias religiosas cruas para dar legitimidade ao caminho criminoso que eles já tinham escolhido.

Muito antes que a jihad se tornasse moda nas margens, o crime era endêmico em partes de Molenbeek, uma falha pela qual muitos culpam Moreaux, o ex-prefeito que ganhou diversas eleições.

Ele armou uma confusão em 2010 quando, juntamente com o prefeito da região de Bruxelas, menosprezou um ataque armado a policiais por um belga-marroquino armado com um rifle Kalashnikov como um "fait divers", ou uma notícia sem maiores consequências.

O atirador, que foi condenado a dez anos de prisão, mas foi libertado depois de quatro, era Ibrahim El Bakraoui, um dos irmãos que, segundo as autoridades, cometeram os ataques suicidas em Bruxelas em 22 de março passado.