Normandia prepara seu "Dia D" 70 anos após desembarque dos aliados na França
Ernest Adolphe Côté, que em breve completará 101 anos, salvo segunda ordem ou lapso do destino, estará de volta às praias da Normandia no dia 6 de junho para as comemorações do Desembarque. O canadense francófono ainda tem o mesmo bigode fino --talvez mais grisalho-- que usava em 1944 quando ele aportou na praia Juno, na comuna de Bernières-sur-Mer, em Calvados.
Nem o peso da idade nem o das medalhas e condecorações penduradas na lapela de seu casaco farão o venerável canadense se dobrar. Desta vez, ele só usará um cachecol em volta do pescoço: ele se lembra de que, nessa estação, o vento marítimo pode ser gelado na região e o mar pode estar violento.
“Estávamos escrevendo a história sem saber”, explica o homem. Ele estará lá, fiel a seu posto, único representante do 22º Royal, o regimento francófono do Exército canadense que participou do Dia D.
Ernest Côté provavelmente se esquivará, como faz toda vez, das lembranças e desses tempos excepcionais na vida de um homem. Ele contará uma anedota, falará sobre a guerra com um gosto que ficou na boca da bebida calvados. O pudor supremo do humor que permite evadir as visões macabras: 5.000 canadenses foram mortos durante a batalha da Normandia.
É por esse cortejo de sombras, “para dizer que homens morreram pela liberdade”, que hoje ele volta para falar ao lado de uma centena de outros veteranos canadenses. No total, com os americanos, os britânicos, os poloneses e outros contingentes estrangeiros, 1.800 homens prestarão homenagem aos companheiros caídos. Eles formam o último grupo de sobreviventes.
Notas da Guerra Fria
Assim como há 70 anos, não será simples chegar às praias da Normandia nesse 6 de junho. A presença de 19 chefes de Estado exigiu enormes medidas de segurança. Bernard Cazeneuve, ministro do Interior, apresentou na sexta-feira (30) o seguinte destacamento: 5.500 gendarmes reforçados por outros 3.500 militares, 2.000 policiais, mil bombeiros ou membros da Defesa Civil.
“Essas celebrações trazem desafios inéditos, mais complicados que um G7 ou um G20”, explicou o ministro. “No dia 5 de junho, cada chefe de Estado terá seu próprio programa, diferentemente do que acontece durante grandes cúpulas internacionais”.
Além de uma cerimônia comum para todos em Ouistreham, oito cerimônias binacionais (entre elas, uma franco-americana no cemitério de Colleville e uma franco-britânica no cemitério britânico de Bayeux) e 18 cerimônias nacionais acontecerão ao longo do dia, em diversos pontos das zonas de desembarque.
Em Ouistreham, três palcos imensos foram instalados em frente ao mar para receber os convidados do espetáculo que será oferecido na praia. Há vários dias que, enquanto helicópteros fazem sobrevoos, no chão se vê um balé de carros pretos e uma ronda de oficiais carregando sacos misteriosos. A presença de Vladimir Putin no contexto geopolítico acrescentou um quê de Guerra Fria.
Ouistreham lembra muito uma Viena dos anos 1950. Ali se cruzam, em relativa discrição, os serviços de segurança de diferentes países. Os americanos são os mais fáceis de reconhecer, a bordo de suas grandes SUVs de vidros escuros, de terno preto e pistola avolumando o paletó. Ingleses, alemães e canadenses também fizeram suas inspeções. Uma testemunha jura ter ouvido russo sendo falado nas ruas.
No saguão da prefeitura, os moradores fizeram fila, com mais ou menos boa vontade, para obter os crachás que lhe darão o direito de circular em sua comuna. Para Romain Bail, 29, o novíssimo prefeito (UMP), será o batismo de fogo. Esse professor de história e geografia recebe solicitações de todos os lados, mas não se queixa de toda essa projeção internacional (mil jornalistas credenciados) sobre sua cidade e seus 10 mil habitantes.
As ruas foram decoradas com 16 quilômetros de bandeiras dos diferentes países convidados. São esperadas 150 mil pessoas no local, nos dias 5, 6 e 7 de junho, e os hotéis da região estão todos reservados há um ano e meio. Os efeitos econômicos esperados chegariam a 5 milhões de euros.
A costa em grande pompa
E é assim em toda a costa que, como a cada dez anos, se preparou com grande pompa. Mesmo quando os representantes de Estado ainda esnobavam esse aniversário, até 1984 a Normandia sempre dedicou um culto a seus libertadores. O custo para a população, no entanto, foi alto: 20 mil mortos, a maioria durante os bombardeios.
A homenagem às vítimas civis será uma das novidades dessa comemoração.
“O Desembarque, por muito tempo, ficou no domínio da história militar, uma vez que se entendia que a estratégia aliada nunca levaria em conta os civis”, explica Jean Quellien, professor emérito em história da Universidade de Caen.
“Foi só nos anos 1990 que se efetuou um recenseamento de seus mortos”, diz Françoise Passera, pesquisadora do Centro de Pesquisa em História Quantitativa (CRHQ).
Para além da pompa das cerimônias oficiais que continuarão durante todo o verão, como sempre acontece, as comemorações darão lugar a momentos de emoção e de graça. Um deles aconteceu na segunda-feira (2), na praia de Utah. O soldado Charly Wilson, 89, nunca havia voltado ali desde o dia 6 de junho de 1944.
“Eu queria estar presente para o 50º aniversário, mas não tive recursos”, ele se desculpa. “Após uma carreira de professor primário, juntei somente US$ 18 mil de economias”.
Diante de estudantes emocionados, Charles Wilson passou do riso às lágrimas. Ele se ajoelhou ao rever “essa praia onde vi meus camaradas caírem”. Depois, arriscou um passo de dança ao som de um antigo clássico do jazz, arrastando com ele os jovens.
Difícil ver uma homenagem mais vibrante do que essa àqueles que perderam a vida nestas areias.
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