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Só revisão da Lei da Anistia esclarecerá crimes da ditadura

Adriano Diogo

Especial para o UOL

27/03/2014 06h00

O ano de 2014 será marcado como um dos que mais se falou na questão da ditadura brasileira (1964-1985). A sanção de uma lei nacional, em 2011, criando a Comissão Nacional da Verdade, gerou um enorme movimento das chamadas comissões da verdade nos Estados, municípios, universidades e sindicatos, a fim de resgatar toda a memória do período de 1964 a 1985.

Esse movimento resultou numa quantidade enorme de teses, livros, artigos, documentos, filmes, vídeos e fotos, resgatando a memória do povo brasileiro. É interessante notar essa reação positiva da sociedade, que fez surgir um fenômeno que foi se organizando.

Em 2014, vemos um novo Brasil. Que repudia a tortura, o ocultamento de cadáveres, as casas da morte. Um país onde militares estão saindo do anonimato e denunciando atos de tortura e morte de perseguidos políticos.

Revisão

A Lei da Anistia deveria se chamar 'lei da autoanistia' daqueles que perpetuaram crimes e permanecem impunes

Porém, a criação de partidos militares, manifestações e resgate de símbolos nos mostram a existência de uma direita organizada, indicando que há lideranças, pensadores e - porque não dizer - eleitorado, muito conservadores.

Além disso, até hoje documentos são vistos por órgãos de informação como sigilo eterno e propriedades do Estado, principalmente na área do Itamaraty e dos ministérios militares. É necessário que se crie leis específicas que possibilitem a abertura desses arquivos.

Mas onde está, no período recente, a lei que impede a abertura desses arquivos e a revelação dos seus responsáveis, bem como a possibilidade de julgamento? Está em 1979, quando a Lei de Anistia foi aprovada por um Congresso sitiado pela ditadura com a presença e o voto dos senadores biônicos.

O reconhecimento, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) na arguição feita pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional em 2010, só foi contestada recentemente pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Lei da Anistia deveria se chamar “lei da autoanistia" daqueles que perpetuaram crimes e permanecem impunes.

Tal impunidade faz com que qualquer crime do presente receba o mesmo tratamento, o sigilo, o perdão e a resistência seguida de morte. Não há democracia que sobreviva com essa legislação em vigor.

Sem a revogação ou a reinterpretação da Lei da Anistia não haverá esclarecimento da história de morte ou desaparecimento forçado dos 437 casos brasileiros, não há possibilidade de reparação dos 80 mil casos de pessoas presas e torturadas no período da ditadura e não haverá nenhum esclarecimento das chacinas que ocorrem todos os dias nas cidades brasileiras.

Tampouco haverá redemocratização e reciclagem das Forças Armadas e das polícias militares.

Felizmente, quando terminou o período militar, em 1985, com a derrota da campanha das diretas para a proposta do colégio eleitoral, um acordo não escrito foi firmado.

Lamentavelmente, foi um acordo que poderíamos denominar, lembrando o filme Uccellacci e Uccellini (1966), do grande cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, como um acordo entre gaviões e passarinhos.

O colégio eleitoral sacramentou uma interpretação da lei na qual gaviões e passarinhos deveriam conviver numa mesma gaiola, num mesmo viveiro. Na qual torturados e torturadores deveriam conviver no mesmo espaço político. Um acordo pelo qual vítimas e algozes construiriam uma nova democracia, sem apuração de papéis ou responsabilidades.

Enfim, nada apurado e tudo resolvido. Vira-se a página. Esse entendimento do fim da ditadura persiste até hoje nas composições políticas mais heterogêneas e heterodoxas.

Colégio Eleitoral

Desde 1985, costurou-se um acordo pelo qual vítimas e algozes construiriam uma nova democracia

Uma democracia sim, mas cheia de deformações e incoerências. Com partidos políticos de origem e natureza antagônicas que convivem na mesma coligação.

Esse modelo está completamente superado, podendo apenas ser substituído por uma nova Constituição. Um modelo baseado no financiamento privado de campanhas é um modelo ruim.

Por isso que 2014 é um ano importante. É o ano da reflexão do que foram esses 50 anos. Suas causas e consequências, sobre as quais poderemos projetar os próximos 50 anos. Sem segredos, sem sigilo eterno, sem acobertamento, com apuração de todos os fatos.

Só assim estaremos a caminho da verdade, da justiça e da democracia.

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