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128 anos após Lei Áurea, país ainda tem marcas escravocratas

Especial para o UOL

13/05/2016 06h00

Da minha avó me lembro pouco, mas me recordo das histórias que minha mãe contava. Não sobre a sua mãe, mas sobre a mãe de sua mãe, ou seja, a minha bisavó. Ela, que nascera escrava, havia presenteado a neta com um velho caldeirão de ferro, lembrança da época de cativeiro. 

Essa relíquia, que continua presente em minha casa, é uma lembrança silenciosa do quanto as marcas da escravidão ainda são recentes e perpetuadas nas poucas gerações que separam o negro da atualidade daquele que foi escravo no último país a abolir o cativeiro nas Américas.

Neste 13 de maio –128 anos após a assinatura da Lei Áurea–, ao olhar para o velho caldeirão, percebo que ainda existem vários caldeirões ligando o país escravocrata de ontem ao Brasil do século 21.

O caldeirão da educação, por exemplo, nos faz lembrar de que nunca houve um programa de inclusão aos descendentes de escravos. Isso mesmo após os avanços da última década, quando, mais do que em toda nossa história, um maior número de negros ingressou nas universidades. Ocorreram políticas afirmativas em escolas superiores de ponta, como a USP, mas afrodescendentes ainda são menos de 4% dos alunos que lá estudam.

No caldeirão da saúde, pesquisas recentes demonstram que as mulheres negras continuam em situação semelhante à de antes da abolição. De acordo com dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres e do Ministério da Saúde, mulheres negras são vítimas de 60% da mortalidade materna no Brasil, sendo que somente 27% delas tiveram acompanhamento durante o parto –contra 46,2% das mulheres brancas.

Tal tratamento desigual tem consequências. No período entre 2000 e 2012, enquanto as mortes por hemorragia entre mulheres brancas caíram de 141 casos (por 100 mil) para 93, entre as mulheres negras aumentaram de 190 para 202 casos. Além disso, os dados mostram uma queda expressiva na mortalidade por aborto de mulheres brancas –de 39 para 15, a cada 100 mil partos– e um aumento de 34 para 51 óbitos de mulheres negras.

Já no caldeirão da segurança pública, infelizmente, conseguimos retroagir a uma situação ainda mais nefasta do que a da época da assinatura da Lei Áurea. Segundo o  Mapa da Violência 2014, os homicídios de negros cresceram, enquanto os de brancos diminuíram. Em 2002, foram assassinados 29.656 negros –soma de pretos e pardos, segundo a nomenclatura do IBGE– e 19.846 brancos. Em 2012, os números passaram, respectivamente, para 41.127 e 14.928. Ou seja, aumentou em 38,7% o assassinato de negros e diminuiu em 24,8% o de brancos.

Outro dado preocupante dessa pesquisa é o crescimento dos crimes de morte contra jovens afrodescendentes. A taxa de 2012 era de 80,7 homicídios a cada 100 mil negros (30,1 para brancos) na faixa dos 15 aos 29 anos de idade. Para variar, nesse intervalo de 2002 a 2012, os assassinatos de jovens brancos diminuíram 28,6%, ao passo que os de jovens negros aumentaram 6,5%.

No caldeirão da participação política, a desigualdade se manifesta avassaladoramente. Embora negros sejam mais da metade da população brasileira, na última eleição os parlamentares que se autodeclaram negros são apenas 5 dentre os 27 eleitos para o Senado Federal. Na Câmara dos Deputados, os afrodescendentes representam 20% dos 513 membros.

Esse quadro de exclusão se estende para os demais poderes da República. Dos 32 ministérios da presidente afastada, Dilma Rousseff, apenas um, o da Cidadania, já foi ocupado por uma ministra negra, Nilma Lino Gomes, e entre os novos ministros indicados pelo presidente interino, Michel Temer, não há negros ou mulheres. Com a aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa, também não temos negros no STF (Supremo Tribunal Federal), fenômeno que se estende para a maior parte das cortes das diferentes instâncias do Judiciário brasileiro.

Essa ausência negra se reproduz na quase totalidade dos órgãos de governo da maioria das unidades da federação. Não há nenhum negro no primeiro escalão do governo Geraldo Alckmin, de São Paulo, o Estado mais rico e desenvolvido do país.

Graças à lei de cotas instituída há três anos, São Paulo conta com uma proporção significativa de negros em cargos estratégicos na cidade. São procuradores, auditores, contadores e professores, entre outros, que fazem do município o que mais inclui negros pelo sistema de cotas na América Latina.

Ainda é cedo para avaliarmos as incipientes políticas afirmativas e seus resultados, mas é fato que elas constituem um importante instrumento para reduzir, mesmo que de forma ainda insuficiente, o fosso que separa os negros dos brancos em nosso país.  Enquanto isso, olho para o velho caldeirão de ferro que às vezes me incomoda, mas que também serve de alerta, pois é o elo que nos liga a um passado triste e que insiste em perpetuar-se em nossa sociedade.

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