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Permitir prisão após 2ª instância torna réus dependentes da sorte

Nelson Jr./SCO/STF
Imagem: Nelson Jr./SCO/STF

Especial para o UOL

08/09/2016 08h15

“Quando, um dia, o guarda me disse que eu estava lá há cinco meses, acreditei, mas não compreendi. Para mim, era sempre o mesmo dia, que se desenrolava na minha cela, e era sempre a mesma tarefa, que eu perseguia sem cessar. Nesse dia, depois de o guarda ter saído, olhei-me na minha bacia de ferro. Pareceu-me que a minha imagem ficava séria, mesmo quando tentava sorrir para ela. Agitei-me diante de mim. Sorri, e ela conservou o mesmo ar severo e triste. O dia acabava e era a hora de que não quero falar, a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão, num cortejo de silêncio. Aproximei-me da janela e, à última luz, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria, e que há de espantoso nisso, se nesse instante eu também estava sério. Mas ao mesmo tempo, e pela primeira vez nos últimos meses, ouvi distintamente o som da minha voz. Reconheci-a como a que ressoava há longos dias aos meus ouvidos, e compreendi que, durante este tempo, falara sozinho. Lembrei-me, então do que dizia a enfermeira no enterro de mamãe. Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões” (ALBERT CAMUS. O Estrangeiro, Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 84)

Num mundo civilizado, ninguém duvida que a prisão é a última providência que um ser humano pode lançar contra o outro. Especialmente diante de um sistema carcerário infelizmente falido, como o nosso, com mais de 600 mil presos (terceiro lugar no mundo), sendo um destino desumano para a imensa maioria —o que resultou no julgamento da ADPF 347, no qual o Supremo Tribunal Federal configurou o chamado “estado de coisas inconstitucional”.

Houve o reconhecimento explícito, pelo STF, que no sistema prisional brasileiro ocorre a violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica.

As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios são cruéis e desumanas, o que viola vários dispositivos constitucionais, normas internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a Lei de Execução Penal e a Lei Complementar 79/1994.

Nesse contexto, o STF mantinha sua jurisprudência tão sólida que motivou a alteração legislativa do art. 283 do Código de Processo Penal pela Lei 12.403/2011, para determinar que o mandado de prisão somente pode ser expedido após o trânsito em julgado do processo, ou seja, quando não couber mais recurso.

Diante desse cenário carcerário vergonhoso, alheio à realidade e ao conhecimento da maioria dos leitores deste artigo, surge uma onda contra a impunidade e a descoberta de esquemas criminosos que saquearam bilhões de reais do nosso país.

De forma contraditória, o Supremo muda seu posicionamento num julgamento isolado, amplamente noticiado pela mídia, para admitir a prisão após o julgamento em segunda instância, por tribunais. Contra essa mudança de posicionamento, está sendo julgada a tese pelas ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44 pelo STF, cujo compromisso é guardar a Constituição Federal.

Não faltaram aplausos diante do clamor popular de que a Justiça tarda e falha, beneficiando grandes criminosos. Mas todos se esqueceram de que temos uma lei, aquela do art. 283 do Código de Processo Penal. Qual a solução? Mudar a lei.

Pode o Supremo Tribunal Federal mudar seu entendimento? É evidente que sim. Mas o Supremo não pode legislar, pois estaria violando um pilar fundamental da democracia, que é a separação dos poderes. E mais aterrorizador do que a violação da Constituição Federal, que não causa dor na pele, é não saber a dimensão do que significa prender antes do trânsito em julgado, por não haver números oficiais.

Em 2015, o Instituto dos Advogados de São Paulo, em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria, promeveu um estudo que analisou 157.379 acórdãos do ano de 2014 somente das câmaras criminais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo —que representa 25% do movimento de recursos do Brasil.

Foram encontrados 57.625 como sendo apelações somente dos réus, sendo certo que cerca de 45% dos recursos foram providos. Mas o mais grave, no julgamento dos mesmos crimes –assumindo a distribuição aleatória e a média ponderada que é a base da estatística– foi constatar que se o julgamento do recurso ocorrer na 4ª. Câmara Criminal a rejeição do recurso é de 81%, mas na 12ª. Câmara Criminal a rejeição é de 16%.

Ou seja, depende-se da sorte na distribuição do recurso para passar a cumprir a pena, ir para a prisão, antes do próximo recurso. Evidente que isso não é Justiça, que somente ocorre depois que houve toda a análise do processo, também pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo STF para correção dos erros de aplicação da lei.

Ninguém ignora a complexidade de uma sociedade de massa que despeja milhões de processos no Poder Judiciário, bem como a necessidade de resposta que não gere impunidade, sob a premissa da garantia da razoável duração do processo como elemento de paz social. Mas não existe o ovo de Colombo.

São várias medidas conjuntas para a solução do problema, e a imensa maioria está nas mãos do Poder Executivo e do Poder Legislativo.

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