O drama vivido por Blumenau em meio à pandemia
Santa Catarina, que chegou a ter números invejáveis de contágio pelo novo coronavírus até abril, vive agora o seu pior momento na pandemia. O número de casos confirmados no estado passou de 2 mil para mais de 67 mil em pouco menos de três meses. Em Blumenau, onde o salto no mesmo período foi de cerca de 100 para mais de 7 mil infecções, a ocupação de leitos de UTI chegou a 97% nos últimos dias.
Aryana Lingner, moradora de Blumenau de 47 anos, aguarda para fazer uma cirurgia cardíaca após ter sofrido um infarto leve. Mesmo com a indicação médica para o procedimento cirúrgico, ela recebeu alta do hospital filantrópico Santa Isabel.
Devido à pandemia, as chamadas cirurgias eletivas foram interrompidas em santa Catarina em março. São intervenções cirúrgicas classificadas como de baixa ou média complexidade, sem risco de morte para os pacientes. Nesses casos, o paciente, já com a indicação médica de necessidade da cirurgia, recebe alta e volta para casa para aguardar uma data para a operação.
"Eu dei entrada no [último] dia 15 com dores no peito. Foi quando o médico me disse que eu precisava ficar em observação e fazer alguns exames. Identificaram que eu tive um infarto leve e que preciso de cirurgia. Mas fui liberada para voltar para casa porque não estão fazendo essas cirurgias durante a pandemia. O próprio documento informa que estou sob risco sem esse procedimento, então, mesmo com medicação, estou à mercê da sorte", diz Lingner.
Em desabafo nas redes sociais, ela lembra que outros pacientes estão na mesma situação, aguardando atendimento, e pede que a população tenha mais cuidado e respeite as regras de distanciamento para não prejudicar ainda mais o sistema de saúde.
Interrompidos no começo da pandemia, os procedimentos eletivos retornaram em maio, mas o governo do estado voltou a bloqueá-los no dia 24 de junho. Além da falta de leitos e do risco de contaminação por covid-19 de pacientes com outras comorbidades, a interrupção visa garantir suprimentos de medicação, principalmente anestésicos, usados para pacientes que precisam de UTI - caso de muitos infectados pelo novo coronavírus.
Diretor técnico do hospital Santa Isabel, de Blumenau, o médico radiologista Marcos Sandrini De Toni, admite que há um risco, mesmo que pequeno, para pacientes que aguardam pelas cirurgias eletivas, mas ele explica que há uma orientação médica para acompanhamento.
"Em uma situação comum, um paciente que tem uma indicação de cirurgia cardíaca e já está internado só sai do hospital após fazer o procedimento. Mas há uma limitação de leitos e também é um risco para o paciente ficar em um hospital que atende pacientes de um vírus como o da covid-19. O governo já tinha interrompido as cirurgias eletivas via SUS, e nós decidimos fazer o mesmo com as privadas", diz De Toni.
Outro problema apontado por De Toni é que 15% dos servidores do hospital foram contaminados pelo vírus, e isso afetou o volume de atendimento. "Às vezes temos que reduzir o atendimento por falta de pessoal, e não de leitos", diz o médico.
Ele afirma que o hospital dobrou o número de leitos de UTI durante a pandemia, chegando a 70, mas ainda assim houve um crescimento acentuado na ocupação em junho.
Afrouxamento precoce de restrições
No final de abril, uma cena de Blumenau viralizou nas redes sociais. Um vídeo mostrou dezenas de pessoas entrando em um shopping da cidade enquanto um saxofonista tocava uma música de boas-vindas. Nos dias seguintes, a imprensa nacional registrou no município bares lotados e sem qualquer tipo de protocolo de distanciamento.
Quando o governo de Santa Catarina começou esse processo de afrouxamento das restrições no fim de abril, liberando comércio, cultos religiosos e transporte coletivo, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e de outras universidades que analisa a evolução da covid-19 no estado chegou a encaminhar às autoridades um estudo alertando que o contágio ainda estava em ascensão.
"O governo estadual fechou cedo os serviços, logo no começo da pandemia, mas a reabertura também foi antecipada. Modelos matemáticos, como o do Imperial College London, aplicados com dados regionais mostram que nunca o índice de transmissão ficou abaixo de 1, então o contágio do vírus nunca foi de fato estável para poder considerar uma reabertura de comércio e transporte coletivo", afirma Luiz Rafael dos Santos, professor-doutor em matemática da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que participa do grupo de pesquisadores.
A justificativa do governo para as medidas foi a baixa ocupação de leitos de UTI, abaixo de 20%. Na época, o estado registrava menos de 40 óbitos - número que chegou a 907 neste domingo (26/07). Nos últimos dias, a média estadual de ocupação de leitos passou de 75% pela primeira vez, com o pico de 97% em Blumenau.
Após a explosão de casos, o prefeito de Blumenau, Mario Hildebrandt (Podemos), pediu para a população colaborar com orientações de cuidados de isolamento e distanciamento.
Hildebrandt disse à DW Brasil que "não recebeu qualquer estudo" alertando para o risco de aumento dos casos e afirma que a prefeitura elevou as restrições de mobilidade quando percebeu que o sistema de atendimento em saúde poderia entrar em colapso.
"Interrompemos o transporte coletivo há duas semanas e mais recentemente fechamos o comércio, incluindo shoppings. Mesmo assim, ainda estamos com números altos de ocupação, e pelo menos 25% são de moradores de cidades vizinhas, o que mostra que o governo do estado precisa tomar as rédeas sobre essas decisões. Um município sozinho não consegue resolver tudo", afirma Hildebrandt.
"Fiquem em casa"
Na última semana, o governador Carlos Moisés (PSL) voltou a restringir algumas atividades em regiões mais afetadas, a maior parte no litoral. Isso foi ampliado no dia 24 de julho. No entanto, as medidas interrompem transporte coletivo e circulação em espaços públicos, como praias e parques, mas não ordenam o fechamento total do comércio. Shoppings podem abrir com restrição de horário.
A DW questionou o governo catarinense sobre a necessidade de manter shoppings abertos mesmo com o aumento de casos de covid-19. Em nota, o governo informou que "monitora constantemente a evolução da doença", e ainda que "as ações foram voltadas a segmentos com alto risco de transmissão do vírus, como transporte coletivo urbano municipal e intermunicipal de passageiros e espaços públicos de uso coletivo".
O atual sinal vermelho para ocupação de leitos em Santa Catarina contrasta com a imagem de estado que conseguiu manter um contágio baixo no início da pandemia, principalmente em comparação com São Paulo, Ceará e Amazonas. Para o prefeito de Blumenau, a população acabou criando uma confiança de que o vírus não se alastraria pela região.
"Estamos vivendo a primeira onda de contaminação só agora. Fechamos cedo, e a população não percebeu a gravidade dessa pandemia. Fiquem em casa", pede Hildebrandt.
Esse também é o apelo que Aryana Lingner, que sofre indiretamente os efeitos da pandemia, faz a toda a população: "Não é brincadeira, estamos em colapso na saúde, e isso afeta quem tem covid-19 e quem tem outras doenças. Todos precisam ficar em casa e se cuidar", pede Lingner, enquanto aguarda por uma cirurgia ainda sem data para ser realizada.
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