Como a pressão das mulheres abriu caminho para a legalização do aborto na Argentina
Um lenço verde com a frase "educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar, aborto legal para não morrer" virou acessório comum em mochilas, penteados e jeans de jovens pelas ruas e meios de transporte de Buenos Aires nos últimos meses, no indicativo mais visível do interesse popular pelo debate em torno do projeto de lei de aborto recém-aprovado pela Câmara de Deputados da Argentina.
Na noite de quarta-feira, milhares de pessoas fizeram vigília diante do Congresso a despeito do frio de quase 0ºC para acompanhar as 23 horas de votação, concluídas na manhã desta quinta com 129 votos a favor, 125 contra e uma abstenção, aprovando o texto que despenaliza o aborto até a 14ª semana de gestação.
O projeto agora tramitará no Senado. Se aprovado, a expectativa é de que seja sancionado pelo presidente Mauricio Macri, segundo assessores. Ele defendeu o debate sobre o aborto no discurso de abertura do ano legislativo, em março passado.
A mobilização popular - feminina e jovem, em particular - em torno do tema foi considerada crucial pelos próprios parlamentares.
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"Foi (uma pressão) fundamental. E ficou claro que temos de parar de criminalizar as mulheres porque fazem aborto", disse a deputada mais jovem na Câmara argentina, Josefina Mendoza, de 26 anos, que é da base governista e usava um lenço verde no pescoço.
O deputado Daniel Fernando Arroyo, da Frente Renovadora, disse que as jovens passaram a pedir "maior educação sexual e liberdade de decidir sobre seus corpos" e que era necessário ouvi-las.
Horas antes da votação na Câmara, nesta quinta-feira, mais de dez colégios de Buenos Aires foram ocupados por estudantes para manifestar apoio à aprovação da lei.
Com faixas e cartazes verdes - cor escolhida por não representar nenhum partido -, as líderes do protesto argumentavam: "Queremos ter nosso direito de decidir, com liberdade, sobre nossos corpos. Essa é uma dívida da democracia com as mulheres", disse a adolescente Francisca Lavieri, do ensino médio do Colégio Nacional de Buenos Aires.
'Nem uma a menos'
Pela legislação atual, que data de quase um século atrás, o aborto é permitido em casos de estupro ou risco para a vida da mãe. Nos demais casos, a prática é penalizada com até quatro anos de prisão para a mulher e para o médico.
O tema já era discutido em âmbito parlamentar havia dez anos, e o projeto aprovado nesta quinta havia sido apresentado sete vezes ao Congresso, mas sem nunca ter chegado ao plenário até agora.
Foi a "onda de lenços verdes" pelas ruas do país que deu força para que ele avançasse na pauta legislativa, diz à BBC News Brasil a jornalista argentina Hinde Pomeraniec, uma das ativistas pela aprovação.
A mobilização começou a partir do movimento Nem Uma a Menos (Ni Una a Menos), que protesta desde 2015 contra casos brutais de feminicídios registrados no país (e posteriormente no restante da América Latina), opina a advogada Agustina Ramón Michel, professora da Universidade de Palermo e integrante da Campanha Nacional pelo Aborto Legal.
"Ser contra o assassinato de mulheres e de transexuais uniu várias mulheres, sem a necessidade de que tivessem uma credencial de feminista", afirma.
"Começamos dizendo chega de feminicídio e depois passamos a dizer que é hora de legalizar o aborto", acrescenta Pomeraniec, uma das fundadoras do Ni Una a Menos.
Debate
País de forte tradição católica e conservadora, a Argentina foi o primeiro país latino-americano a legalizar o casamento homossexual, em 2010 - gerando uma onda de mudança que também favoreceu a aprovação da lei do aborto, segundo observadores.
Mas o projeto de lei causa polêmica e enfrenta também forte oposição de parcela significativa da população.
A vigília de madrugada diante do Congresso, por exemplo, contou também com uma multidão de lenços azuis, que viraram símbolo da campanha contrária à legalização.
"É absurdo e injusto aprovar uma lei que permite a morte de seres humanos que têm de ser respeitados a partir do momento da concepção", criticou no Congresso o deputado Luis Pastori, que votou contra a legislação.
"O bebê gerado tem vida, mas não terá voz para se defender se o aborto for praticado", agregou a deputada Gabriela Burgos.
A votação dividiu deputados tanto da situação quanto da oposição, e o debate no Congresso se alongou por dois meses, com apresentações de autoridades da saúde, médicos e sacerdotes, entre outros.
O ministro da Saúde, Adolfo Rubinstein, defendeu a legalização afirmando que "47 mil mulheres deram entrada nos hospitais públicos do país, em 2014, após a realização do aborto em clínicas clandestinas" e que "em 2016 foram registradas 43 mortes maternas por aborto".
Mas um dos casos mais emblemáticos da votação foi o mencionado pela ex-juíza e deputada Alejandra Rodenas. Trata-se da adolescente Julia, de 16 anos, que morreu alguns dias após realizar um aborto numa clínica clandestina.
"Julia passou várias dias com febre alta por causa das complicações do aborto e não teve coragem de dizer a verdade aos pais. A mãe cuidou de Julia como se ela tivesse um resfriado e quando a adolescente foi levada para o hospital, já era tarde e ali ela faleceu", disse Rodena. "Existe uma realidade que já não podemos negar. Esta lei tem que ser pela Julia e pelas várias Julias do país."
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