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Ataque ao Bataclan: o relato de um sobrevivente do 'horror sem limites' em Paris há 5 anos

Em 13 de novembro de 2015, a França viveu sua noite mais sangrenta desde a Segunda Guerra - Getty Images
Em 13 de novembro de 2015, a França viveu sua noite mais sangrenta desde a Segunda Guerra Imagem: Getty Images

Norberto Paredes

BBC News Mundo

13/11/2020 20h56

Naquela noite de sexta-feira, cheguei ao meu apartamento em Montmartre, no norte de Paris, depois de tomar um ou dois drinques com meus amigos.

Como todo começo de fim de semana, Paris estava em festa, e naquele 13 de novembro de 2015, havia ainda mais motivos para comemorar.

Liguei a televisão e o jogo de futebol entre a França e a Alemanha havia acabado de começar. Sentei-me para assistir e depois de um quarto de hora ouvi o que pareciam ser fogos de artifício.

Eu não tinha certeza se eram do Stade de France ou do meu bairro e, embora tenham chamado minha atenção, não os achei particularmente extraordinários.

Mal sabia eu que meu país adotivo estava prestes a passar por um dos piores momentos de sua história.

A apenas 3 km de minha casa, naquele exato momento, estava para começar um massacre, o mais sangrento da França desde a 2ª Guerra Mundial.

E, no meio disso, estaria David Fritz Goeppinger, um chileno que entrevistei hoje, no quinto aniversário dos atentados de Paris, que deixaram 130 mortos.

Cerca de uma hora após o início do jogo, David estava parado perto da janela de um prédio agora famoso no 11º distrito de Paris. Ele parecia cansado, estava suando e tinha manchas de sangue na roupa, sem saber o que fazer ou para onde ir.

Nascido no Chile e criado na França desde os 4 anos de idade, ele acabara de testemunhar um massacre que ainda não havia acabado.

Dezenas de perguntas passavam por sua cabeça rapidamente. Onde estavam seus amigos? Eles estavam vivos? Por que os agressores não o haviam matado? Ele iria sair vivo daquele lugar?

"Foi uma mistura de sentimentos muito estranha. Estava sofrendo porque tinha certeza que ia morrer, que ia deixar de existir. Também fiquei desanimado, disse a mim mesmo: 'Droga, como é curta a vida!'. Eu queria ter filhos, uma esposa... mas eu estava lá sozinho. Acho que é uma sensação muito dura. Eu me senti muito sozinho e vazio", diz David, que hoje tem 28 anos e é fotógrafo.

Naquela sexta-feira, às 21h40, três extremistas invadiram o Bataclan, uma emblemática casa de shows parisiense, - durante apresentação do grupo de rock americano Eagles of Death Metal.

Armados com fuzis AK-47, bastante munição e cintos explosivos, membros do autodenominado Estado Islâmico (EI) gritaram Allahu akbar ("Deus é o maior") "com toda a força de seus pulmões" antes de começar a atirar na multidão, de acordo com o engenheiro de som da banda, Shawn London.

"Éramos nós contra os terroristas. E quando digo nós, quero dizer todos os espectadores", lembra David.

O tiroteio no Bataclan deixou 90 mortos e foi realizado paralelamente a três ataques suicidas no Stade de France, onde jogavam as seleções de França e Alemanha, e uma série de ataques a bares e restaurantes dos movimentos 10º e 11º distritos, no nordeste de Paris.

O saldo final da noite sangrenta foi de 130 mortos, de 19 nacionalidades diferentes, e 350 feridos.

2 horas e meia de terror

David lembra que havia acabado de voltar do banheiro quando ouviu sons metálicos e percebeu que a música havia parado e as luzes haviam sido acesas, de acordo com seu relato em Un jour dans notre vie (Um dia em nossa vida, em tradução livre), livro que ele escreveu após a insistência de seu psicólogo e no qual relatou tudo o que viveu naquela noite.

Os disparos que "fizeram o ar vibrar" ajudaram-no a entender que um tiroteio estava acontecendo.

Ele correu, procurou um lugar para se esconder e tentou escapar por uma janela, da qual ficou pendurado por cerca de quatro minutos pensando no que fazer até que um dos agressores o viu e pediu-lhe, com seu fuzil na mão, para voltar para dentro.

Perguntando-se por que o extremista não havia atirado, David obedeceu e, a partir daquele momento, ele se tornou uma das dezenas de pessoas que foram feitas reféns.

"Naquela noite, o horror não teve limites. O horror é o mundo, e o mundo é o horror", relata o jovem em seu livro.

'Sou chileno'

David se lembra muito bem de uma das primeiras palavras trocadas com os autores do ataque.

"Você bombardeia nossos irmãos na Síria, no Iraque", "Soldados franceses e americanos bombardeiam do ar. Nós somos homens e bombardeamos do solo", "Obrigado (François) Hollande, você o escolheu", começou a dizer Ismaël Omar Mostefaï, um dos extremistas.

O agressor de 29 anos nasceu e foi criado nos arredores de Paris e era descendente de argelinos. Ele conseguiu ser identificado por um dedo encontrado nos restos mortais recolhidos da casa de shows, depois de detonar seu cinto de explosivos após ser mortalmente ferido pela polícia.

Mas isso seria apenas mais tarde. Antes, ele teve uma conversa com David:

- O que você acha do seu presidente?

- Nada. Não sou francês, sou chileno.

'Permanecemos dignos, fortes e muito unidos'

Cinco anos depois, David reflete sobre essa conversa.

"Não creio que o simples fato de ter respondido que sou chileno salvou minha vida. Disse isso porque, administrativa e mentalmente, eu era chileno naquela época."

"Eu era um chileno no massacre de Bataclan", insiste.

"O cara viu que eu claramente não tinha respondido suas perguntas sobre François Hollande nem tinha uma opinião sobre a política francesa. Era natural para mim dizer que era chileno, porque nunca tive a opção ou o poder de votar."

O ponteiro dos minutos avançou, talvez devagar demais para David e os outros reféns no Bataclan. Entre as discussões, os terroristas tentaram negociar com a polícia por telefone: pediram a Hollande que retirasse todas as tropas francesas da Síria.

"Todos (os reféns) permaneceram extremamente dignos, fortes e muito unidos durante aquelas duas horas e meia. Isso nos permitiu ficar à tona apesar da tempestade que nos cercava", lembra David.

Em cinco telefonemas, todos muito curtos, os jihadistas insistiram com suas demandas, enquanto o negociador da Brigada de Investigação e Intervenção (BRI, na sigla em francês) pediu que esperassem e tivessem paciência: "Faremos todo o possível".

David entendeu tudo muito claramente: o agente estava tentando ganhar tempo.

O julgamento dos atentados de Paris

Após exaustiva investigação, a Justiça francesa julgará 20 pessoas suspeitas de terem participado daquela série de atentados em janeiro de 2021.

O julgamento terá duração estimada de seis meses.

Entre as 20 pessoas indiciadas, está o franco-belga Salah Abdeslam, único sobrevivente do grupo de agressores acusados — de atirar em centenas de pessoas nos bares e restaurantes de Paris, no Bataclan e em torno do Stade de France.

Além dos acusados, mais de 1.750 civis e centenas de advogados e jornalistas devem participar do processo.

14 dos indiciados encontram-se hoje sub a custódia da Justiça francesa ou belga, entre intermediários e responsáveis ??pela logística do ataque; 11 estão em prisão preventiva e outros 3 estão sob supervisão judicial.

As outras 6 pessoas serão julgadas à revelia. Um mandado de prisão internacional paira sobre elas, embora, de acordo com algumas versões, 5 tenham morrido no Iraque ou na Síria.

Um ataque que 'transformou' a França

A intervenção da BRI foi rápida e ocorreu momentos após a última chamada. Houve tiros, gritos, granadas, muita fumaça, seguidos por mais tiros e mais gritos.

Os agentes conseguiram entrar no Bataclan e imobilizar Mostefaï, que, ferido de morte, ativou seu cinturão de explosivos. A explosão matou um segundo extremista, Foued Mohamed-Aggad.

O terceiro, Samy Amimour, havia morrido duas horas antes, depois de ser neutralizado por um policial e explodir o cinto.

Naquela noite tudo mudou na França.

"O ataque transformou a sociedade francesa no sentido de que a luta contra o terrorismo foi militarizada", diz o filósofo e geopolítico Cyrille Bret, professor do Instituto de Ciências Políticas de Paris (Sciences Po).

"A França não descobriu o terrorismo em 2015. Há muito tempo convive com ele, com movimentos de libertação nacional, terrorismo de extrema-direita, comunista, marxista, islâmico...", diz o autor do livro Dix attentats qui ont changé le monde - Comprendre le terrorisme au XXIe siècle (Dez atentados que mudaram o mundo - compreendendo o terrorismo no século 21, em tradução livre).

"A novidade do dia 13 de novembro é que os terroristas recorreram a técnicas militares, organizando ataques por meio de comandos coordenados. Para combater o extremismo, a França transformou a luta em uma guerra real".

Uma nova etapa

E, é claro, a vida de David também mudou.

"Ainda penso naquele dia quase com tanta frequência quanto antes, só que antes doía e me fazia sofrer. Hoje, não é mais assim. Já consegui analisar, desconstruir e construir novas memórias sobre ele, principalmente com outros ex-reféns do Bataclan", diz ele.

"Acho que o título do meu livro resume bem como o vejo hoje: 'Um dia na nossa vida'. Acho que devo deixar espaço para essas memórias e não tentar combatê-las, porque há uma espécie de trabalho psicológico em andamento."

No quinto aniversário de um ataque que mudou a vida de milhões de cidadãos, a data é recordada sem muitas cerimônias. Desde 29 de outubro, o país inteiro está sob confinamento para conter a propagação de uma segunda onda de coronavírus que afeta toda a Europa.

Cinco anos depois dos acontecimentos, os franceses estão em busca de respostas e, enquanto isso, David tenta seguir com sua vida.

"Estou tentando ser fotógrafo e, ao mesmo tempo, trabalhando em um documentário sobre o ataque de Bataclan. Diria que depois de cinco anos, estou parcialmente refeito, mas digo isso com reservas, porque, no próximo ano começa o julgamento. Essa será uma nova etapa."