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Ada Blackjack: a fascinante história de como a 'Robinson Crusoé' do Ártico escapou da morte

Ada Blackjack (ao centro) com os outros membros da fatídica expedição - BBC
Ada Blackjack (ao centro) com os outros membros da fatídica expedição Imagem: BBC

Ellie Cawthorne - BBC History Extra

13/02/2021 15h03

Em 19 de agosto de 1923, a noite gélida caía sobre a Ilha de Wrangel, a 160 quilômetros ao norte da costa da Sibéria. Enquanto uma névoa espessa cobria a paisagem árida do Ártico, Ada Blackjack sentava enrolada em um casaco grosso de pele de rena para preparar seu minguado jantar.

Ela havia chegado à ilha dois anos antes, como a costureira e cozinheira que acompanhava um grupo de exploradores do Ártico. Mas a expedição havia sido arrasada por doenças e pelo mau tempo, e agora ela era a única dos cinco membros que restava viva.

Depois da refeição daquela noite, Blackjack ouviu um barulho desconhecido.

Acreditando que devia ser "um pato ou algo assim", ela foi para sua barraca e tentou dormir. Às 6h da manhã do dia seguinte, ouviu o barulho novamente, mas desta vez, "parecia mais o apito de um navio".

Blackjack pegou seu binóculo e saiu correndo. De fato, ela avistou um veleiro ao longe, com sua tripulação vagando ao longo da costa. Finalmente, o resgate de Blackjack havia chegado - e sua provação de dois anos havia terminado.

Ato de desespero

Com menos de 1,5 metros de altura, sem experiência prévia em expedições, pouca sede de aventura e um medo paralisante de ursos polares, Ada Blackjack era uma candidata improvável para a exploração do Ártico.

Nascida em 1898, ela foi criada por missionários metodistas na cidade de Nome, no Alasca.

Embora muitos iñupiat (grupo indígena do Alasca) fossem bem versados na arte da sobrevivência no Ártico, essas habilidades nunca foram consideradas necessárias na educação missionária de Blackjack, que em vez disso foi ensinada a limpar, cozinhar e costurar.

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Ada Blackjack estava desesperada para ter seu filho de volta
Imagem: BBC

Mas em 1921, Blackjack, então com 23 anos, era uma mãe solteira divorciada e desamparada.

Depois que seu marido abusivo a deixou, ela lutou desesperadamente para sustentar o filho, Bennett, que sofria de tuberculose.

Mas mantê-lo sem ajuda se tornou impossível, e Blackjack se viu obrigada a colocá-lo em um orfanato.

Ela precisava desesperadamente de dinheiro para poder se juntar ao filho novamente, quando um navio chamado Victoria aportou em Nome.

Vinda de Seattle, a embarcação transportava quatro jovens encarregados de uma missão arrebatadora.

A pedido do célebre explorador canadense Vilhjalmur Stefansson, eles estavam indo para a remota Ilha de Wrangel. A equipe planejava morar na terra desabitada por dois anos com o intuito de reivindicar o território para o governo britânico.

Os membros da expedição

Allan Crawford

Com apenas 20 anos e sem experiência, Allan Crawford era o líder da expedição. Ele foi escolhido por ser canadense, o que o tornava cidadão britânico, atributo necessário para reivindicar a ilha em nome dos britânicos.

Stefansson escreveu ao jovem capitão antes da missão: "Embora eu tenha confiança em você, você está no comando pelo acaso de ser britânico... a coisa mais sábia a fazer é seguir o conselho de seus homens experientes."

Frederick Maurer

O americano Fred Maurer não era novato no norte gelado.

Sete anos antes, o jovem de 28 anos havia até passado um tempo na Ilha de Wrangel, na fadada expedição Karluk de Stefansson. Essa missão quase custou sua vida: outros 11 homens morreram.

Ele se casou com sua amada Delphine antes de partir, e Stefansson foi seu padrinho.

Milton Galle

"Minha experiência é de que, em geral, quanto mais jovem o homem, mais facilmente ele se adapta às condições do norte", escreveu Stefansson a um amigo ao planejar a missão na Ilha de Wrangel.

Seu recruta mais jovem foi o texano Milton Galle, de 19 anos. Na verdade, foi no Ártico que Galle deixou crescer a barba pela primeira vez.

Ele estava "simplesmente encantado" por ter sido escolhido para a missão e ansioso para registrar tudo usando sua estimada máquina de escrever.

Lorne Knight

Estridente e direto, Lorne Knight, natural de Seattle, tinha um apetite de longa data por aventura.

Ele havia participado de expedições árticas anteriores com Stefansson e sofrido até de escorbuto, mas se recuperou se empanturrando de língua de rena fresca.

Knight era próximo da família, e seu pai escreveu para dizer como todos estavam orgulhosos de "Lorne ter se tornado um verdadeiro explorador".

Para Blackjack, ele era uma figura aterrorizante e sua estrutura larga, temperamento imprevisível e barba desgrenhada a intimidavam.

Uma gata genial

Além dos cinco membros humanos, a expedição também contou com um explorador felino: uma gata chamada Victoria.

Vic se aconchegava nos sacos de dormir da equipe à noite, vivendo dos seus restos de comida. E sobreviveu dois anos na Ilha de Wrangel.

A candidata perfeita

Em Nome, eles pretendiam recrutar vários iñupiat para ajudar nas tarefas do acampamento, e Blackjack, conhecida como uma costureira habilidosa, era a candidata perfeita.

No início, ela se mostrou relutante, temia ficar longe de casa por tanto tempo e estava ciente de sua falta de experiência. Esse sentimento ameaçador ganhou força quando as outras famílias iñupiat que haviam sido recrutadas pularam fora no último minuto.

Mas Blackjack estava desesperada. O salário mensal de US$ 50 era suficiente para ter seu filho de volta. Era uma oportunidade que ela não podia se dar ao luxo de recusar.

Na tarde de 9 de setembro de 1921, Blackjack se juntou à equipe que zarpou de Nome a bordo de um navio diferente, o Silver Wave. Depois de uma semana, a Ilha de Wrangel despontou no horizonte.

À primeira vista, não se parecia com a região estéril e bloqueada pelo gelo sobre a qual haviam sido prevenidos: o afloramento rochoso estava coberto de líquenes e musgos, o clima era relativamente ameno.

Os homens de Crawford não perderam tempo e hastearam a bandeira britânica, enterrando um documento que proclamava a reivindicação do território "por Sua Majestade George, Rei do Reino Unido".

Os primeiros meses foram repletos de otimismo.

Depois que montaram o acampamento, eles rapidamente engrenaram em uma rotina. Passavam os dias mapeando a ilha ou coletando espécimes geológicos e biológicos ? e jogando ou lendo os mesmos poucos livros de cabo a rabo.

Stefansson havia garantido a eles que um navio chegaria com mais suprimentos no verão, então a equipe não fez nenhuma tentativa de racionar seus mantimentos para seis meses, que eles complementavam com a aparentemente abundante caça selvagem da ilha, especialmente ursos polares, que aterrorizavam Blackjack quando vagavam perto do acampamento.

Ela cozinhava tudo o que os homens conseguiam pescar ou caçar, de gaivotas a raposas e corujas. Os filés de urso polar fritos em gordura de foca se revelaram especialmente populares.

No entanto, lentamente, o clima no acampamento começou a mudar.

As oportunidades de caça começaram a desaparecer quando o impiedoso inverno ártico trouxe com ele 61 dias de escuridão.

Blackjack, com cada vez mais saudade de casa, rapidamente se arrependeu de ter ido e irritou os homens com suas mudanças de humor e explosões de angústia.

Knight mostrou pouca empatia e reclamou em seu diário: "NÃO é divertido que nós quatro tenhamos uma mulher estúpida uivando e se recusando a trabalhar e comendo toda a nossa comida boa".

O que eles não sabiam

Apesar das dificuldades, Blackjack e a equipe sabiam que, se conseguissem aguentar até o verão, o navio de Stefansson chegaria com novos membros da equipe e suprimentos, além de preciosas cartas de casa.

"Não vou me barbear ou me vestir bem até o ano que vem, quando chegarão o Sr. Stefansson e vários outros homens brancos", escreveu Galle em seu diário.

A equipe acompanhou as transformações dos blocos de gelo conforme as estações mudavam, aguardando ansiosamente a chegada do navio.

O que eles não sabiam é que, após um atraso na partida por falta de financiamento, o navio de reabastecimento, chamado Teddy Bear, havia sido apanhado por uma das piores geadas em 25 anos.

Em 25 de setembro de 1922, seu capitão enviou uma mensagem a Stefansson dizendo que eles haviam sido forçados a voltar: "Não tivemos sucesso. Hélice danificada. Todos os marinheiros aqui previram falhas devido à condição incomum do gelo".

Stefansson não estava muito preocupado: "Não havia razão para pensar que a habilidade dos homens que já estavam lá fosse inadequada para enfrentar a situação."

Na Ilha de Wrangel, quando o verão deu lugar ao outono, a equipe foi se dando conta lentamente que ninguém viria para rendê-los. Seus mantimentos estavam quase esgotados, os ursos polares que antes eram tão abundantes pareciam ter desaparecido, e as missões de caça estavam se tornando cada vez mais infrutíferas.

Logo ficou claro que, apesar de todo esforço de Blackjack para servir até mesmo os pedaços de carne mais intragáveis, simplesmente não havia comida suficiente para manter os cinco vivos.

Knight, enquanto isso, começava a se sentir fraco e letárgico. Tinha dores nas articulações e na gengiva. Embora tenha tentado esconder os sintomas de seus companheiros de equipe, ele os reconhecia de expedições anteriores ao Ártico. Eram os primeiros estágios do escorbuto.

Em janeiro de 1923, com o fantasma da fome pairando sobre o acampamento, Crawford tomou uma decisão difícil.

Junto com Galle e Maurer, ele embarcou em uma ambiciosa jornada de volta pelo mar agora congelado para buscar ajuda, deixando Blackjack no acampamento com Knight, cujo estado de saúde deteriorava rapidamente. Eles partiram com parte dos suprimentos e os cinco cães restantes, cientes do perigo que corriam.

"Resta saber se atingirei meu objetivo", escreveu Maurer em sua última carta à esposa. "Se o destino me favorecer, terei o prazer de te contar tudo, senão, outra pessoa, sem dúvida, te contará".

Blackjack ficou especialmente triste ao se despedir de Galle, que era gentil e gostava de ouvir seus contos folclóricos.

Alguns dias depois de os três desapareceram no horizonte, o clima mudou. Uma tempestade violenta desabou, "soprando e balançando tão forte como nunca havia visto", escreveu Knight desanimado em seu diário.

Crawford, Galle e Maurer nunca mais foram vistos.

Enfermeira e caçadora

No acampamento, a condição de Knight se agravou rapidamente. Ele foi logo confinado à uma cama, sofrendo de sangramentos nasais fortes e coberto de manchas de hematomas, enquanto seus dentes caíam de suas gengivas moles.

Embora nunca tivesse usado uma arma, Blackjack percebeu que teria que trazer carne fresca se quisesse manter Knight vivo.

Apesar do corpo diminuto, ela aprendeu sozinha a atirar com seu rifle enorme e pesado, e construiu uma plataforma da qual podia ver os temidos ursos polares. Ela estava com tanto medo deles que começou a dormir com o rifle, para o caso de se aproximarem demais do acampamento.

Blackjack cuidou de Knight da melhor maneira que pôde. Mas ele estava longe de ser um paciente grato: a repreendia constantemente e até jogava livros nela. No entanto, a ideia de ficar sozinha na ilha a angustiava.

Em 23 de junho, seus temores finalmente se confirmaram quando ela acordou e encontrou Knight frio e imóvel.

O último esforço

Embora a perspectiva de viver sozinha em uma paisagem tão vasta e silenciosa fosse assustadora, Blackjack seguiu adiante com o árduo trabalho diário de se manter viva.

Ela contou cada dia em um calendário feito com o papel da máquina de escrever de Galle e, mesmo quando perdia a esperança, Blackjack estava determinada a voltar para o filho.

Ela preencheu seu diário com as preocupações sobre o futuro de Bennett e chegou a costurar um par de pantufas para ele.

As habilidades que Blackjack adquiriu sozinha foram essenciais para se manter viva.

Depois de escrever um bilhete todas as manhãs detalhando seu paradeiro, caso a equipe de resgate aparecesse, ela montava armadilhas para raposas - e aprendeu também a caçar pássaros e focas.

Não foi nada fácil, e cada oportunidade perdida significava um destino cada vez mais incerto.

Quando o vento levou para longe um bote de peles que Blackjack havia elaborado cuidadosamente, ela chorou de frustração. Mas se recusou a se dar por derrotada e encontrou conforto em sua fé cristã, como ela escreveu em seu diário em 23 de julho: "Agradeço a Deus por viver."

Só em 20 de agosto de 1923, quase dois anos depois de chegar à Ilha de Wrangel, que sua provação finalmente chegou ao fim.

Quando a tripulação do veleiro Donaldson se aproximou do acampamento, Blackjack, tomada pela emoção, caiu em prantos. E quando a equipe de resgate perguntou onde estavam seus companheiros de equipe, ela só conseguiu responder: "Não há ninguém aqui além de mim. Estou completamente sozinha".

O que aconteceu depois?

Em seu retorno ao Alasca, Blackjack se viu em meio a uma tempestade midiática.

A imprensa queria saber como a versão feminina de Robinson Crusoé havia sobrevivido a uma provação tão assustadora que havia tirado a vida de outros exploradores heróicos.

A pressão se intensificou quando a acusaram de não ter feito o suficiente para salvar Knight.

Nada disso era fácil para uma mulher tão reservada como Blackjack. Tudo o que ela queria era se juntar ao filho.

Com o salário da viagem, Blackjack finalmente conseguiu levar Bennett a Seattle para receber tratamento médico.

Mas embora tenha saído com vida da Ilha de Wrangel, sua luta pela sobrevivência não havia terminado.

Enquanto Stefansson e outros se beneficiaram escrevendo livros sensacionalistas sobre sua terrível provação, Blackjack continuou a ser atormentada pela pobreza e dificuldades ao longo de toda sua vida.

Mais tarde, ela teve um segundo filho, Billy, mas problemas financeiros a forçaram a deixá-lo com Bennett em uma instituição de caridade por nove anos.

Ela acabou se mudando para o Alasca para trabalhar como pastora de renas e viveu até os 85 anos.