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A Cara da Democracia

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O fim da Lava Jato e o patético Barroso

Ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), em sessão extraordinária em 2019 - Carlos Moura/SCO/STF
Ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), em sessão extraordinária em 2019 Imagem: Carlos Moura/SCO/STF

Colunista do UOL

24/04/2021 04h00

Leonardo Avritzer*

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) por sete votos a dois corroborando a tese da suspeição do juiz Sérgio Moro no processo do assim chamado “triplex” representa, efetivamente, o fim da operação Lava Jato. Os principais derrotados pelo fim dessa via inquisitória de combate à corrupção são os justiceiros de Curitiba que atuavam em conluio, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, e seus parceiros no STF. A derrota da Lava Jato constitui também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, lançada por Raymundo Faoro no final dos anos 50 em seu livro “Os Donos do Poder” e resgatada pelos justiceiros de Curitiba. A tese é que a corrupção é o maior, senão o único, problema do Brasil e explicaria o fracasso civilizatório do país. Analisemos o argumento de Raymundo Faoro para entender sua expressão no Lavajatismo.

A tese principal de “Os Donos do Poder” é que o grande elemento da formação do estado brasileiro, que explicaria o país como nação, seria a formação de um estado patrimonial que abriria caminho para a apropriação privada de recursos do estado. Faoro realiza duas operações de qualidade acadêmica duvidosa para defender tal tese: a primeira é atribuir esse elemento à formação portuguesa, ainda no começo do milênio passado, e assumir (supostamente com base na obra de Max Weber) que esse elemento patrimonial haveria se transferido e reproduzido no Brasil. A segunda é identificar esse elemento em todos os períodos históricos do nosso país.

Assim, em um capítulo considerado por alguns o pior texto já escrito sobre a história do Império, Faoro interpreta o período como centralista, estamental e patrimonialista, algo que qualquer estudante de graduação de história sabe ser equivocado. Para Faoro, o liberalismo (que, diga-se passagem, a Lava Jato nunca professou porque o liberalismo preza o direito de defesa) envolveria a ruptura com o estado patrimonial. Faoro achava possível interpretar a formação do Brasil sem tratar do problema da escravidão. É interessante notar também que, apesar das críticas ao estamento patrimonial e certa defesa de um liberalismo conservador, Faoro prescinde de uma visão sobre como democratizar o estado brasileiro. Para ele, bastaria destruir o estamento burocrático, algo que, podemos argumentar, a Lava Jato tentou realizar.

Pensando a Lava Jato como "faorismo judicial"

A Lava Jato pode ser entendida como um “faorismo judicial”, isto é, uma operação que associou a tentativa de acabar com o estamento burocrático com a ambição de dar fim à concepção de estado vigente no país desde a década de 1930. Para isso, seus integrantes reivindicaram um ativismo judicial muito mal compreendido pelos nossos juristas porque supõe que os juízes tudo podem e buscaram estendê-lo para a arena do direito penal.

Assim, a disputa política no Brasil deixou de se dar pela via eleitoral, mas tratou de criminalizar aqueles que defendiam uma concepção de nação organizada em torno do estado. Para esses, a Lava Jato reservou não apenas a derrota política imposta por um impeachment para o qual ela contribuiu decisivamente, mas também a prisão com o objetivo de mudar a composição do sistema político.

Tal objetivo foi claramente expresso pelo juiz Sérgio Moro em artigo com pretensões acadêmicas no qual analisava a operação Mãos Limpas. Ali, Moro afirmou “A operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente. Talvez não se encontre paralelo de ação judiciária com efeitos tão incisivos na vida institucional de um país.”

Hoje é difícil duvidar que esse foi um dos objetivos de Moro: redesenhar o sistema político brasileiro. Ele e seus aliados na elite brasileira esqueceram-se apenas de um detalhe: que a outra força política disponível no nosso país é o militarismo de feições autoritárias, que foi o maior beneficiário do “faorismo judicial”.

Sabemos o que levou à reversão do punitivismo jurídico seletivo ou do “faorismo judicial.” Primeiro, uma decadência sem par da economia brasileira desde 2015, para a qual a Lava Jato contribuiu decisivamente, tal como foi observado pelo juiz Ricardo Lewandowski na sessão de quinta-feira, 22 de abril. Mais recentemente, a ascensão de um militarismo sem controle que ocupou o ministério da saúde e foi parceira na tragédia que se abateu sobre o Brasil ao longo da pandemia. E, por fim, a resistência daqueles que acreditam na instituição do estado de direito, completamente ignorada, senão vilipendiada, pelos lavajatistas. Ou seja, o que fracassou não foi a Lava Jato, mas um projeto de destruição sistemática do estado brasileiro, que não encontrou substituto nem no governo Temer e nem no governo Bolsonaro. Esses governos acentuaram os impasses vividos pela economia e pela política no Brasil. O único substituto que apareceu foi a militarização do governo introduzida por Bolsonaro e reforçado pateticamente na gestão Pazuello no Ministério da Saúde que escancarou a incompetência dos militares na gestão.

Coube ao eminente jurista Luís Roberto Barroso servir como a última linha de defesa do “faorismo judicial.” Barroso, já havia escrito um artigo no qual defendia a compatibilidade entre o STF como instituição contramajoritária e como instituição representativa da opinião pública, essa última supostamente constituída por aqueles membros do mercado interessados em destruir o estamento burocrático.

O jurista deu um passo adiante na defesa do “faorismo” ao deixar de lado quaisquer arroubos ligados ao liberalismo como forma do direito de defesa e passar a sustentar a ideia de que um dos componentes do estamento burocrático tem legitimidade para se colocar acima da lei ou violar o coração do direito penal. Aqueles que não defendem a Lava Jato seriam defensores da corrupção e não do estado de direito. A resposta por ele recebida de Gilmar Mendes mostra o tamanho do equívoco de Barroso.

Ao se arvorar defensor da moralidade sem forma política ou judicial, Barroso “brinca” com uma concepção judicial e não democrática de governo. Ao se considerar representante de uma parcela da opinião pública, ele se coloca contra o estado de direito para defender o projeto político “faorista”. Entretanto, tudo indica que essa concepção foi derrotada na sessão de quinta-feira, apesar dos gritos do eminente ministro ao final da sessão.

O resultado da votação de 22 de abril aponta para o fim do “faorismo judicial” e para o retorno de uma concepção de estado definida pela política e não por parte dos membros do poder judiciário que se constituíram em uma facção antirrepublicana e contra o estado de direito. Caberá aos eleitores em 2022, e não ao poder judiciário, determinar o projeto político que irá substituir o faorismo judicializado e militarizado.

*Leonardo Avrtizer é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, coordenador do INCT - Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e autor de diversos livros, entre eles o recente Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro, Pêndulo da Democracia e Participatory Institutions in Democratic Brazil.