Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Entre a destruição e a esperança: 2022, o ano da reconstrução do Brasil
Leonardo Avritzer*
O Brasil inicia o ano de 2022 com uma esperança cautelosa. No ano em que o país completa 200 anos de independência, essa comemoração não tem como se desvencilhar de uma análise do desastre pelo qual o país passou desde 2013 e da sombra dolorosa provocada pelos mais de 600 mil mortos na pandemia. Há 100 anos, em 1922, estávamos melhor: a semana de 22 mostrava para o mundo um Brasil diferente que já não era uma continuação de Portugal e do escravismo colonial e que tinha os seus próprios elementos culturais, valorizando a presença indígena, negra e das mulheres na formação cultural da nação. Infelizmente 1922 não foi capaz de redefinir o país e não conseguimos nem ao menos tentar ser, como nos sugeriu Stefan Zweig, o país do futuro. Não conseguimos porque o que determinou a nossa trajetória foram as amarras do passado. São elas também que explicam o desastre dos últimos anos.
O bolsonarismo é um aggiornamento das nossas amarras do passado e sua associação com algumas do presente. Sabemos quais são elas: o escravismo colonial que produziu a sociedade mais desigual do planeta entre os países industrializados; uma estrutura de propriedade da terra absurda que legitima a apropriação ilegítima da terra pública e hoje se tornou a principal causa de destruição da floresta Amazônica; os baixíssimos índices de educação da população que não permitem a competitividade econômica que o mercado tanto preza e nem algo muito mais importante que é um sistema político de qualidade; a concentração desproporcional de homicídios no país que supera o número de homicídios nos Estados Unidos, Canadá e Europa tomados conjuntamente.
Assim, temos uma associação entre dominação e destruição no Brasil, destruição dos homens, das mulheres, da floresta e da natureza. O bolsonarismo foi a hegemonização do país pela lógica da destruição. Não que não houvesse destruição anteriormente. Havia, e muita, mas o país tinha um projeto paralelo em direção ao futuro. Com o bolsonarismo esse projeto paralelo deixou de existir e a destruição tornou-se o próprio projeto. A pergunta é: o que fez os brasileiros aceitarem esse projeto e como superá-lo?
Um amigo meu, em um agradável almoço há algumas semanas no Rio, fez a seguinte afirmação: o único mandamento levado a sério pela classe média brasileira é o "não roubarás". De fato, o desrespeito pela vida por parte do atual presidente em manifestações e, pasmem, até mesmo na chamada "Marcha para Jesus" mostra uma apologia insuportável da morte que apenas se acentuou durante a pandemia com o "e daí" ou "o que eu posso fazer".
Fui, neste ano de 2021, um entusiasta da "CPI da Pandemia", mas um fenômeno sociológico chamou a minha atenção: foi apenas quando o desastre pandêmico atingiu o mandamento "não roubarás" que o bolsonarismo iniciou a sua trajetória de colapso. Brasileiros morrendo por falta de oxigênio em Manaus não foram suficientes; milhares de brasileiros morrendo em filas de hospitais ou em casa não foram suficientes. Assim, o fim do Bolsonaro não se deu a partir do "não matarás" e sim a partir do "não roubarás", quando o país descobriu as negociações espúrias em torno da vacina. Ali o bolsonarismo atingiu o fundo do poço. Mas o importante é pensar como se dará a reconstrução do Brasil, que necessariamente terá de envolver a revalorização da vida.
A reação ao bolsonarismo e à cultura da morte começou em algum momento do primeiro semestre do ano de 2021. Exaustos com a pandemia e a mortandade, os brasileiros aderiram em massa à vacinação independentemente dos ataques e boicotes feitos pelo presidente. E o mais surpreendente é que em uma situação na qual o estado brasileiro encontrava-se destruído pelo bolsonarismo, como apagões no CNPq, no Inpe, no Ibama e na Capes, entre outras agências importantes, o estado brasileiro respondeu com surpreendente capacidade aos desafios da vacinação.
Butantan e Fiocruz permitiram que o país rompesse com sua inserção marginal na produção de vacinas que beneficiou originalmente os Estados Unidos e a Europa. A vacinação transcorreu em um padrão que nada deixou a desejar aos melhores exemplos no mundo, seja no que diz respeito à velocidade como no que tange à qualidade do atendimento. Ou seja, o SUS, as instituições de saúde e o programa nacional de imunização mostraram o que pode ser um projeto de país. E o fizeram por um motivo principal, por um forte comprometimento de seus servidores atacados e desprezados há quase uma década. É esse comprometimento do brasileiro comum que aponta para a capacidade de recuperação do país quando um desafio nacional se coloca. É somente com ele que entramos em 2022.
A principal esperança para 2022 é a concretização da chapa Lula-Alckmin. PT e PSDB foram as grandes novidades da democratização brasileira. Os elementos exitosos da nossa democratização, a estabilização da moeda e a redução da pobreza foram realizados pelo PSDB e pelo PT. Jamais PT e PSDB deveriam ter se engajado mutuamente na dinâmica destrutiva que permitiu que chegássemos ao fundo do poço em 2020 e 2021. Coube àquele que foi a principal liderança da democratização brasileira, o ex-presidente Lula, iniciar uma trajetória de reaproximação das forças democráticas principais do país com o seu discurso do dia 10 de março proferido depois da anulação das sentenças da 13ª vara da Justiça Federal em Curitiba por Edson Fachin.
Lula poderia ter reclamado da demora de Fachin em reconhecer que Moro não tinha foro sobre o triplex. Afinal de contas o próprio Moro como o seu jeito de "moleque que provoca o Supremo" já havia reconhecido isso quando afirmou na resposta aos embargos declaratórios do ex-presidente: "Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente." Ou seja, já nos embargos declaratórios, Moro reconhecia a ausência de foro e Fachin esperou alguns anos para reconhecer o fato.
Ainda assim, Lula agradeceu a Fachin, tal como agradeceu a um Supremo que o proibiu de conceder entrevistas em 2018. Ao fazê-lo, Lula apontou para um caminho diferente do ressentimento ou da revanche e abriu o espaço para a reconstrução do papel da política no Brasil. Agora, mais de nove meses depois, ele complementa esse caminho com o convite ao ex-governador de São Paulo e ex-candidato a presidente Geraldo Alckmin para compor a sua chapa como vice-presidente.
Não acredito que Alckmin traga muitos votos a Lula, mas acho que ele aporta algo muito mais importante: a reabilitação do fazer política. O gesto de Lula ao convidá-lo e o gesto de Alckmin ao aceitar o desafio constituem uma mensagem ao povo brasileiro depois de quase uma década de destruição política que começou com junho de 2013, continuou com a operação Lava Jato e terminou com o desastre chamado Pazuello e sua operação tabajara em Manaus. Lula, ao convidar Alckmin, sinaliza que a reconstrução da democracia brasileira ou ocorrerá a partir dos dois polos exitosos que ela gerou, PT e as forças do centro democrático hoje representadas por Alckmin, ou ela não ocorrerá. O problema não é que o PT ou Lula não tenham uma agenda, porque eles têm. A questão é sinalizar um momento de volta da Política com negociações, capacidade de transigir e a partir daí criar uma agenda ampla.
O primeiro passo dessa agenda é mostrar aos brasileiros aquilo que percebemos intuitivamente na pandemia: o país precisa de estado e de políticas públicas. O segundo é mostrar que a política pode ser uma atividade construtiva e que a política democrática é a única solução para os males do nosso país. Lula e Alckmin juntos representam a ampliação da política e nesse sentido eles são a segunda e a terceira via conjuntamente. Com os dois associados, passa a estar à mão o início do longo processo de reconstrução do Brasil.
* Leonardo Avritzer é graduado em Ciências Sociais (1983) e mestre em Ciência Política (1987) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research (1993) e pós-doutor pelo Massachusetts Institute of Technology (1998-1999) e (2003). É professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.
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