Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Promotores, procuradores e anjos
Por Fábio Kerche e Rafael Viegas*
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) adiou por 40 vezes o julgamento do procurador Deltan Dallagnol no caso do famigerado power point.
Nada fora do padrão. Este é apenas um exemplo da dificuldade de se conseguir algum tipo de punição para os quase inimputáveis integrantes do Ministério Público. O CNMP, na verdade, é um órgão que vem funcionando mais para reforçar a autonomia do MP do que para exercer um efetivo controle sobre os promotores e procuradores que extrapolam os limites legais em suas atividades. Por isso, a tímida proposta que está sendo discutida no Congresso Nacional de mudança constitucional (PEC 5/2021) alterando a composição do Conselho é oportuna.
A PEC propõe mudanças na composição do CNMP visando aperfeiçoar o controle democrático sobre os MPs da União (MPU) e dos Estados (MPEs). Já o seu substitutivo passou a incluir, além dessas mudanças, outros aspectos organizacionais igualmente relevantes, como, por exemplo, no que tange à composição de cada Conselho Superior interno (órgão da administração de cada MP), o que tem implicações para a movimentação da carreira, o desfecho de inquéritos civis e acordos celebrados pelos membros dos MPs sem controle externo. Contudo, nesse breve espaço, limitamo-nos à proposta de mudança da composição do CNMP, incluindo o seu substitutivo.
Hoje, a composição do CNMP é de 14 integrantes, com a presidência do procurador-geral da República. A maioria dos conselheiros é membro do próprio MP, o que já descarta qualquer ilusão que o Conselho seja um órgão de controle externo. Esse número de integrantes seria mantido pela nova proposta, mas o Congresso ganharia o direito de indicar mais um conselheiro para além dos dois que já tinha direito.
A proposta de mudança, contudo, é tão acanhada que este conselheiro, escolhido por meio de um rodízio entre as duas casas do legislativo, teria que ser necessariamente membro do MP. Ou seja, a maioria de integrantes do órgão encarregado de fiscalizar o MP continuaria sendo de membros da própria instituição.
Outras mudanças estão previstas no que se refere ao perfil da composição. Três conselheiros, e não mais quatro, seriam oriundos do Ministério Público da União. O órgão é chefiado pelo procurador-geral da República e composto pelo Ministério Público Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios. Essa alteração é relevante do ponto de vista federativo porque mitigaria uma assimetria de poder concentrado na mão do PGR, aumentando levemente o peso dos MPs dos estados.
Ademais, de acordo com o substitutivo, uma das 15 vagas poderia ser ocupada por um ex ou atual procurador-geral de Justiça de um dos Ministérios Públicos estaduais. A proposta também prevê a possibilidade de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ocuparem uma cadeira no Conselho. Antes esta era reservada apenas a juízes indicados por essas duas Cortes.
O STF passaria a contar com mais um indicado ao CNMP. Com duas vagas, a interferência da cúpula do Judiciário sobre o Conselho aumenta, o que não significa necessariamente mais controle. Pelo contrário. Não são raras as vitórias dos membros dos MPs junto ao STF quando o assunto é resistência ao controle, e é de conhecimento geral a falta de limites impostos por esta Corte aos abusos, em tese, praticados no curso da Lava Jato.
Em todo caso, considerando as mudanças na composição do CNMP pelo substitutivo, dos 15 membros previstos, oito continuariam sendo das carreiras dos MPs da União e dos Estados. Portanto, o MP brasileiro seguiria com um "controle externo" sendo realizado por atores internos em sua maioria.
A redação original da PEC previa que o cargo de corregedor-nacional não seria exclusivamente ocupado por conselheiros integrantes do MP, como é hoje, abrindo a possibilidade para os de origem externa. Embora um externo tivesse menos chance de ser o mais votado, já que a maioria do CNMP é de membros internos ao Ministério Público, se abria uma fresta para se oxigenar o controle sobre os promotores e procuradores. O substitutivo, provavelmente pela costumeira pressão exercida pelo MP sobre qualquer proposta de mudança, recua nesse ponto, abandonando a ideia. Pelo substitutivo que está sendo discutido, mantém-se a exigência de que o corregedor seja um dos conselheiros oriundos do próprio Ministério Público.
O substitutivo ainda prevê que a vice-presidência do CNMP não seja mais, de forma automática, ocupada pelo vice-procurador-geral da República. Isso é salutar porque retira do PGR parcela de seu poder sobre o Conselho. Contudo, assim como para a Corregedoria Nacional, o substitutivo reserva a posição para integrante do MP, vetando a possibilidade de que o vice seja um dos conselheiros externos.
O CNMP pune pouco. Menos de 2% dos casos que chegam ao Conselho tem um veredito contrário ao acusado e quase metade das poucas penas são bastante brandas. Por outro lado, o CNMP já tomou decisões regulando atividades do MP que seriam atribuições do Legislativo e não de um Conselho. O CNMP "legalizou" que promotores conduzissem investigações criminais e autorizou que membros do MP não levassem casos ao Judiciário que envolvessem valores baixos, tudo a despeito de decisões do Congresso e da Constituição de 1988.
Quando se aponta que faltam limites aos integrantes do MP brasileiro, o grande argumento deles é que existe o CNMP. O Conselho funciona como uma window dressing institution. Ou, em bom português, uma instituição de fachada, um enfeite de vitrine. Na prática, não atende às expectativas daqueles que entendem que na democracia todos devem prestar contas de sua atuação e de suas escolhas a terceiros. Como dizia Madison, um dos pais fundadores da democracia norte-americana, os homens não são anjos, e nada indica que promotores e procuradores ao prestarem um concurso público ganhem asas. A proposta discutida no Congresso Nacional, em relação à composição do CNMP, merece ser considerada e aprovada. Mesmo tímida e, por isso mesmo, na prática, talvez inócua.
* Fábio Kerche é Doutor em Ciência Política pela USP, professor da UNIRIO e autor, junto com Vanessa de Oliveira e Cláudio Couto, do artigo "Os Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público no Brasil: instrumentos de accountability?" (Re. Adm. Pub., n.54, 2020).
Rafael Viegas é doutorando em Administração Pública e Governo (FGV-Eaesp), autor de "Governabilidade e Lógica de Designações no Ministério Público Federal: Os 'Procuradores Políticos Profissionais' (Revista Brasileira de Ciência Política, n. 33, 2020). Na FGV-Eaesp, junto com Maria Rita Loureiro e Fernando Abrucio, desenvolve pesquisa sobre a composição e a atividade normativa do CNJ e do CNMP, que se encontra em fase de publicação.
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