Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
De Zé Trovão a Michel Temer: os novos dilemas de Jair Bolsonaro
Leonardo Avritzer
A semana da pátria mais atípica das últimas décadas envolveu três personagens centrais: Michel Temer, aquele que escreve cartas, Jair Bolsonaro, aquele que insulta líderes da República em manifestações, e Zé Trovão, aquele que dirige caminhões ou caminhoneiros a partir do México. É lamentável constatar que a democracia brasileira depende do que cada um deles irá fazer, mas o estado frágil das nossas instituições sugere a necessidade de decifrar esses três personagens.
Lembremos o papel de cada um deles entre 2016 e 2018. Michel Temer, o grande articulador da Câmara dos Deputados ao largo de quase uma década, tornou-se presidente depois de um impeachment que ele mesmo articulou a partir da sua posição de vice-presidente, aliado a Eduardo Cunha que, ao que parece, também foi traído. Temer sempre foi aquilo que na linguagem de Brasília se denomina um operador político, ato para o qual não é necessária muita base política e quase nenhum carisma. Ainda assim, a falta de qualquer base política implicou em um apoio pífio a partir de 2017, o que não o impediu de continuar presidente. O principal papel histórico de Michel Temer – que, ao que parece, ele continua exercendo – foi a desvinculação radical entre eleições e soberania popular. Temer não achou que tinha qualquer obrigação com o programa eleito nas urnas em 2014, com a tradição de ampliação de direitos que levou à formação das secretarias de direitos da mulher e da igualdade racial. Ele governou apenas para o mercado, renovando um aspecto antigo da política no Brasil, que se manifestou novamente na última semana: quando o mercado não quer, o Congresso não derruba um presidente, independentemente de seus crimes.
Mas, o governo de Michel Temer gerou um segundo movimento que levou à greve dos caminhoneiros e fortaleceu a candidatura de Jair Bolsonaro. A baixa popularidade do governo Temer em 2018, que chegou a 2% em algumas pesquisas, mostrou que Congresso Nacional e mercado não são capazes de ganhar a opinião pública. Temer instituiu o teto de gastos e realizou uma reforma trabalhista pífia clamada pelo mercado, mas não conseguiu legitimidade política para o seu governo. No início de 2018 sua taxa de rejeição era superior à da ex-presidente Dilma. Foi aí que surgiu um segundo movimento, aquele que reúne os antidemocratas com capacidade de mobilização popular.
A greve dos caminhoneiros trouxe para o centro da conjuntura o primeiro grupo desde 1985 capaz de mobilizar em torno da bandeira da intervenção militar. É verdade que já tinha havido o tuíte do general Villas Boas, mas ali havia uma mistura de ameaça ao Supremo com uma ideia de respeito à missão democrática das Forças Armadas. A partir da greve dos caminhoneiros passou a fazer parte da conjuntura, mais uma vez, a ideia de militares no poder. Hoje três dos quatro ministros palacianos são militares e, até a posse de Ciro Nogueira, todos os quatro o eram. Mas, foi a partir de setembro de 2018 que o fenômeno mais importante da conjuntura ocorreu: a adesão em massa da classe média a Jair Bolsonaro. Com o discurso tosco baseado no "se não der certo a gente tira", a classe média aderiu a um presidente que não tinha convicções democráticas e nem dizia tê-las. Foi a partir da reunião desses três setores – classe média, militares e mercado – que a candidatura Jair Bolsonaro decolou.
Nos últimos meses, Jair Bolsonaro voltou a perder o apoio da classe média, não parece claro que ele tem o apoio do exército e começa a perder apoio no mercado. Foi isso que levou Jair Bolsonaro de volta aos braços dos caminhoneiros, dessa vez por meio de Zé Trovão - ou Zé Chuvinha, se a capacidade de mobilização tiver influência sobre o nome. A ideia do bolsonarismo é que ele pode se sustentar no poder e consolidar a sua agenda apenas com o apoio dos grupos antidemocráticos. Essa ideia tem dois problemas: o primeiro deles, o preço do combustível. A política de internacionalização do preço da gasolina e do diesel afeta setores fundamentais da base de apoio ao bolsonarismo, tanto os caminhoneiros quanto os trabalhadores por aplicativos. É pouco crível que esses setores vão se mobilizar a favor do presidente neste momento. Mas, o segundo aspecto é mais importante. A elite brasileira assistiu a radicalização antidemocrática de Bolsonaro dando o seu beneplácito ou ficando calada. Ao que parece esse foi o recado de Temer a Bolsonaro: depois do desembarque de forças importantes do mercado da base de apoio do capitão, ele não garante mais que um impeachment não seja aprovado.
O Brasil tem dois grupos pouco democráticos ou antidemocráticos atuando na política desde 2016: o primeiro foi o que articulou o impeachment enquanto uma mudança de posição em relação às políticas públicas sem eleição. Esse grupo teve e, ao que parece, continua tendo Michel Temer como o seu principal líder e a Câmara dos Deputados como seu centro articulador. Ele não parece estar preocupado com a legitimidade do sistema político na opinião pública, mas seus integrantes precisam ter condições de se reeleger. Esse grupo apenas irá se mover se o desastroso governo de Jair Bolsonaro ameaçar sua recondução para a Câmara no ano que vem. O segundo grupo, o mais claramente antidemocrático, tem uma pauta de ameaça ao STF, de pressão sobre a imprensa por meio econômico ou político e uma pauta moral retrógrada. Os dois grupos atuaram articuladamente até agora e o mercado foi o ponto de contato entre eles via Paulo Guedes. A novidade da semana é que os operadores da Faria Lima já não estão apoiando caminhoneiros como Zé Trovão e mandaram o menino de recado deles avisar isso a Jair Bolsonaro.
*Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG, coordenador do INCT - Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação e autor de diversos livros, entre eles Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política, Pêndulo da Democracia e Participatory Institutions in Democratic Brazil.
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