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A Cara da Democracia

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Dia do agricultor e a fome: governo destaca armas e movimentos doam comida

Agricultor envolvido no projeto Orgânico Solidário - Divulgação
Agricultor envolvido no projeto Orgânico Solidário Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

28/07/2021 12h46

Marco Antonio Teixeira, Camila Penna, Renata Motta, Priscila D. Carvalho*

Hoje (28), dia do agricultor, uma postagem da Secretaria de Comunicação do governo Bolsonaro traz foto de um homem levando uma arma e a chamada "alimentando o Brasil e o mundo". Em mais uma infeliz peça de comunicação, o governo junta a afirmação de que o "agro brasileiro alimenta 800 milhões de pessoas no mundo" à informação de que o presidente estendeu a posse de armas a proprietários rurais e reduziu a invasão de terras. Enquanto o governo incentiva a violência, os movimentos, criminalizados pelo poder público, vêm protagonizando iniciativas de solidariedade para fornecer comida de verdade para as pessoas. Houve doações no dia de ontem, repetindo um dos tipos de ações que vêm sendo realizadas desde o início da pandemia por ativistas no país, como mostram nossas pesquisas.

A fome é uma das piores expressões da desigualdade social no Brasil e, já sabemos, ela voltou. Enfrentar a insegurança alimentar é tarefa premente para a democracia e a igualdade no Brasil, e temos visto propostas contrastantes sobre como fazer isso. Enquanto ministros do governo sugerem distribuir comida vencida e restos de alimentos, movimentos sociais vêm reinventando estratégias para enfrentar o problema via doações, demanda de políticas de apoio à agricultura e a defesa de alimentos de qualidade. Desde a redemocratização, a colaboração entre Estado e sociedade civil construiu o modelo que garantiu ao Brasil a saída do Mapa da Fome da ONU, em 2014. Essa tradição foi interrompida pelo atual governo, assim como as políticas que haviam se mostrado exitosas na promoção da segurança alimentar e nutricional.

Com a chegada da pandemia, a insegurança alimentar atingiu 59,4% dos domicílios brasileiros, como revelou a pesquisa "Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil", do Grupo de Pesquisa Food for Justice, da Freie Universität Berlin. O fenômeno já apresentava uma tendência de crescimento: passou de 22,6%, em 2013, para 36,4%, em 2017-2018, segundo o IBGE. Essa tendência se acentuou após 2020.

O governo federal vem tratando do assunto a seu modo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, condenou o desperdício de alimentos, criticando um suposto excesso de comida nos pratos da classe média, e sugeriu que em vez de serem jogados fora, os alimentos fossem direcionados aos mais necessitados. Já a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, defendeu rever a legislação que regula a validade dos alimentos. As duas falas ocorreram em evento da Associação Brasileira de Supermercados, realizado em 17 de junho deste ano.

Em contraste com as propostas governamentais, ações de movimentos sociais têm almejado a garantia de comida de verdade para a população brasileira. Pesquisamos ações das principais organizações que congregam agricultores(as) familiares e camponeses no país ao longo dos sete primeiros meses da pandemia. Analisando notícias publicadas nos sites da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar no Brasil (Contraf), Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), identificamos cinco formas de ações frente aos desafios da pandemia.

A doação de alimentos da agricultura familiar e camponesa e de marmitas. Predominante no MPA e MST, essas ações de solidariedade disputam o sentido do alimento na sociedade, colocando-o como direito e não como mercadoria. As doações de alimentos foram comumente acompanhadas por doações de máscaras, sabão, álcool e sangue; por símbolos políticos como adesivos #forabolsonaro; e pela realização de atos contra o governo.

A interpelação institucional incluiu reuniões virtuais de pressão, articulação com membros dos três poderes, propostas de políticas e projetos de lei, notas técnicas e posicionamentos expondo limites das medidas adotadas pelo governo. Os movimentos sindicais rurais estiveram mais envolvidos neste tipo de ação.

A construção de mercados alternativos por meio da articulação direta entre produtores e consumidores, como cestas de alimentos camponesas ou agroecológicas. Se essas iniciativas já estavam em curso antes da pandemia, elas aumentaram com a adoção de canais diversificados de venda, via grupos de WhatsApp, perfis em redes sociais, aplicativos de celular, plataformas de comercialização na internet e articulações entre cooperativas de produção e mercados locais.

A ação direta ocorreu principalmente online e incluiu a realização de protestos, marchas, tuitaços, lives, festivais, campanhas, plantio de árvores. Um exemplo da adaptação para a esfera virtual foi a realização do 1º Festival Juventude Rural Conectada da Contag, mobilização que desde 2007 ocorria de forma presencial. Os protestos presenciais adotaram um conceito de distanciamento social e o uso de máscaras, mostrando o posicionamento político dos movimentos rurais em defesa de medidas preventivas ao Covid-19.

Finalmente, a ação informacional incluiu a construção de conteúdo sobre os cuidados necessários durante a pandemia, novas possibilidades de acesso a políticas, como o auxílio emergencial, prazos relevantes para agricultores(as) familiares e resumos dos debates legislativos. Em um contexto político que se polarizou ainda mais na pandemia, adotar uma frente de informação e comunicação aos seus filiados foi um posicionamento político de todos os movimentos analisados, com maior incidência entre a Contag e a Contraf.

Os resultados da pesquisa mostram a centralidade dos movimentos sociais no combate à insegurança alimentar, conjugando ações de doações de alimentos, criação de mercados alternativos, e interpelação institucional por políticas de incentivo à doação de alimentos pela agricultura familiar, como a Lei Assis Carvalho, vetada pelo presidente. Enquanto o governo federal tergiversa em seu papel de garantir o direito à alimentação adequada, essas ações representam um suspiro para as famílias que passam novamente a enfrentar a mazela da fome.

Marco Antonio Teixeira - Sociólogo, Pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin e Coordenador Científico do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça.

Renata Motta - Socióloga, Professora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin e Líder do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça.

Camila Penna - Socióloga, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Priscila D. Carvalho - Cientista política, Pesquisadora de pós-doutorado do INCT-Instituto da Democracia, Universidade Federal de Minas Gerais.