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A Cara da Democracia

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A diferença que o federalismo faz

Governadores se reúnem com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em 20 de abril de 2021 - Andre Oliveira/Divulgação
Governadores se reúnem com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em 20 de abril de 2021 Imagem: Andre Oliveira/Divulgação

Colunista do UOL

26/04/2021 04h00

Vanessa Elias de Oliveira*

A estrutura federalista brasileira confunde os cidadãos quanto a de quem é a responsabilidade pelas diferentes políticas públicas. Na época em que nosso maior problema de saúde era a dengue, a pergunta que se fazia era: de quem é o mosquito, do município, do estado ou do governo federal? Na pandemia, esse debate voltou: o vírus, de quem é? No atual contexto, a confusão sobre responsabilidades dos entes federados – que acabou desaguando no Supremo Tribunal Federal (STF) – serviu também para explicitar a diferença que o federalismo brasileiro faz para a gestão das políticas.

Duas decisões do STF foram centrais para a condução de medidas sanitárias na pandemia. A primeira delas foi relacionada à Ação Direta de Inconstitucionalidade requerida pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6.341), que determinou que as medidas administrativas adotadas pelo governo federal não afastam a possibilidade de tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. A segunda foi a decisão atinente à ADPF 672, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), questionando os “atos omissivos e comissivos do Poder Executivo federal, praticados no contexto da crise de saúde pública decorrente da pandemia do COVID-19 (Coronavírus)”. Sobre esta o tribunal reconheceu a competência concorrente, determinando que os três níveis de governos (federal, estaduais e municipais) podem impor medidas restritivas, como distanciamento e isolamento social, suspensão das atividades escolares, restrições ao comércio e livre circulação de pessoas.

O posicionamento do STF sobre a competência concorrente dos entes federados fez enorme diferença para a condução das medidas sanitárias necessárias ao enfrentamento da Covid-19. Isso ficou muito claro não apenas na primeira fase da pandemia, em meados de 2020, mas também na fase mais aguda, entre fevereiro e abril de 2021. E alguns casos locais explicitam os efeitos do federalismo para as gestões municipais, seu sucesso – ou fracasso – no combate ao coronavírus.

Um caso emblemático de sucesso é o do município de Araraquara, cidade do interior paulista, que adotou o lockdown, um isolamento social mais restritivo. Já em meados de fevereiro de 2021 o prefeito, Edinho Silva (PT), proibiu a circulação desnecessária, fechou o comércio, as escolas e até os serviços essenciais e adotou blitz para o controle das medidas restritivas. A política sanitária local, muito mais dura do que a adotada pelo governo estadual, gerou manifestações contrárias, mas teve bons resultado no controle da pandemia: ao final de março o município registrava 39% de redução das mortes e de 57,5% dos casos. Semanas depois, em 21 de abril, a cidade já verificava 74% de queda na média móvel de casos.

Em oposição ao êxito da política adotada em Araraquara, temos o exemplo de fracasso em Mirandópolis, outra cidade do estado de São Paulo. O prefeito, Everton Sodario (PSL), ignorou a política de isolamento do governo estadual, pregou contra o distanciamento, incentivou o chamado “tratamento precoce” (comprovadamente ineficaz) e, ainda, atacou a vacina do Butantan. No período de apenas um mês, entre os meados de março e abril, o total de mortes em decorrência da Covid-19 aumentou mais de 170%. O crescimento médio no estado de São Paulo, no mesmo período, foi de 32,5%. Ao final de março, o diretor do hospital estadual emitiu uma nota afirmando que o hospital estava com taxa de ocupação de 185% – o que significa, na prática, que os pacientes estavam sendo atendidos de maneira completamente improvisada. Infelizmente, Mirandópolis não é o único caso de fracasso. No próprio estado de São Paulo, outros, como o de Bauru, também servem para demonstrar o estrago feito por prefeitos que optaram por negar a ciência. Infelizmente, são muitos os exemplos, país afora, de gestões desastrosas da crise sanitária.

Esses casos exemplificam bem a diferença que o federalismo faz. No mesmo estado da federação, a autonomia política, administrativa e financeira garantida pela Constituição de 1988 permitiu que prefeitos adotassem políticas diametralmente opostas para enfrentarem a pandemia. O resultado foi igualmente distinto, com ausência de medidas sanitárias e o crescimento exponencial de mortes numa, e lockdown e retração significativa de casos e mortes noutra. A pandemia escancarou algo nem sempre claro para a população, que frequentemente afirma que “tanto faz o prefeito, nada muda”. Não é verdade. A autonomia possibilita respostas distintas para os problemas sociais locais, permite experimentações e inovações em políticas públicas, mas, por outro lado, consente também arroubos irresponsáveis, desde que dentro dos limites constitucionais. E simplesmente “não fazer nada” se enquadra nisso, mas pode ter consequências danosas.

Na pandemia, essa autonomia gerou embates entre governadores e prefeitos, de um lado, e o presidente, de outro. Se fossemos um país unitário, estaríamos todos, estados, municípios e seus cidadãos, à mercê do negacionismo bolsonarista, sem isolamento, sem vacina, com taxas de mortalidade maiores, crises econômica e social piores. A autonomia de estados e municípios, garantida pela Constituição de 1988 e reafirmada pelas decisões do STF, evitou que o cenário, já tão triste de quase 400 mil mortes e a pior gestão da pandemia no mundo, fosse ainda mais trágico.

Se, por vezes, a centralização faz falta e é demandada para coordenação e diminuição das desigualdades regionais, por outras fica claro que a descentralização é necessária para adaptações locais. No atual contexto, pode-se dizer que a crise sanitária teria sido maior sem o desenho institucional adotado pelo nosso federalismo, sobretudo porque o governo federal se mostra incapaz de coordenar as unidades subnacionais e atuar para diminuir as desigualdades no acesso aos serviços de saúde.

*Vanessa Elias de Oliveira é mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, com doutorado-sanduíche na Columbia Univeristy, e mestre em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. É professora de Ciência Política do Bacharelado em Políticas Públicas e da Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC). Atualmente desenvolve pesquisa sobre a judicialização de políticas públicas e sociais no Brasil e sobre o municipalismo brasileiro e a produção local de políticas públicas. Atua na área de Ciência Política, com ênfase em Análise Institucional e de Políticas Públicas.