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Marido de Ivete e Caso Henry: 'Brasil escravocrata sempre culpa doméstica'
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No mesmo momento em que o Brasil acompanhava emocionado a saga da doméstica Lourdes da novela Amor de Mãe, na busca por reunir todos os seus filhos, o drama de duas outras trabalhadoras revelava a violência sofrida por aquelas que enfrentam o desafio de cuidar.
A vida real das mais de 6 milhões de domésticas do país é cheia de lutas e conquistas, como a da personagem de Regina Casé, e também de muitas situações de preconceito e violação de direitos, agravadas na pandemia.
Em março de 2020, começo da crise sanitária, a Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) lançou campanha para pressionar empregadores a dispensarem suas funcionárias de comparecerem ao local de trabalho, com remuneração assegurada, enquanto durassem o isolamento.
A ação, que envolveu outras organizações sociais, além de cobranças ao Ministério Público do Trabalho e a parlamentares, ocorreu logo após a morte da trabalhadora doméstica Cleonice Gonçalves. A primeira vítima do coronavírus no Rio morreu após ser contaminada na casa dos patrões.
A mobilização da Fenatrad não conseguiu impedir a insistência de muitas famílias em manterem essas trabalhadoras em riscos de contaminação —seja no transporte público, seja no convívio em lares com pessoas contaminadas, sem equipamentos de proteção, como luvas e máscaras.
Marido de Ivete Sangalo acusou cozinheira por contaminação
Diariamente recebemos denúncia de companheiras que permanecem trabalhando em casas com membros da família contaminados pela doença. Muitas sem o direito a voltarem para suas casas. São forçadas a continuar por medo de perderem o emprego, única fonte de renda de suas famílias
A afirmação é de Creuza Maria de Oliveira, secretária-geral da Fenatrad e presidente do Sindoméstico (Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Estado da Bahia).
Creuza, que milita pelos direitos das trabalhadoras domésticas desde a década de 1980, recebeu com indignação as declarações do nutricionista Daniel Candy, marido da cantora Ivete Sangalo.
"Uma declaração infeliz, carregada de preconceito. Se averiguar corretamente, pode ser que tenha sido o contrário. Ela é que foi contaminada pela família. Como ele mesmo disse no pedido de desculpas, ela ficava mais tempo lá e só percebeu os sintomas quando voltou para a própria casa."
Creuza denuncia que muitas famílias ricas continuam realizando festas e recebendo visitas em suas residências durante a quarentena. As trabalhadoras, por medo e desconhecimento dos seus direitos, continuam prestando serviço nesses momentos de aglomeração.
A sindicalista lembra que o STF (Supremo Tribunal Federal) já julgou a possibilidade de a covid-19 ser considerada acidente de trabalho. O Ministério Público do Trabalho orienta a dispensa remunerada para pessoas que realizam trabalho doméstico, com exceção apenas aos serviços absolutamente indispensáveis, como cuidadores de idosos e pessoas com deficiência.
Essa trabalhadora, que não teve sequer o nome dito pelo patrão, chamada apenas de 'minha cozinheira', além de ter que trabalhar em um momento de pandemia, colocando sua vida e de seus familiares em risco, ainda sofreu os transtornos causados pelas acusações do patrão
Creuza Maria de Oliveira, da Fenatrad e do Sindoméstico
Caso Henry e mais uma culpa na doméstica
Para Creuza, as relações estabelecidas no trabalho doméstico mantêm resquícios da escravidão. "O Brasil escravocrata sempre encontra um jeito de culpar as domésticas."
Ela lembra outro caso recente de repercussão nacional, envolvendo trabalhadora doméstica.
"Infelizmente, o drama vivenciado pela babá do menino Henry Borel não é novidade para a nossa categoria profissional. Qualquer crime cometido em uma residência, a doméstica é sempre colocada como testemunha, quando não é a primeira suspeita."
Creuza considera absurda a cobrança de que a cuidadora da criança deveria ter denunciado antes e defende que a babá não tem culpa nenhuma das violências que o menino sofria. Ela pontua que a funcionária já havia alertado a família, como disse em depoimento à polícia.
"Na situação em que ela estava, qualquer denúncia que fizesse, recairia sobre ela a responsabilidade em provar. Os patrões sempre encontram um jeito de se defender e a doméstica é que sairia com a culpa. Já conhecemos essa história."
Creuza alerta as domésticas a não continuarem em residências com episódios de violência. "A Lei Maria da Penha protege a trabalhadora que presencia ou sofre violência. Ela não é obrigada a continuar trabalhando em ambiente violento. Ela deve sair e ter seus direitos trabalhistas assegurados."
'Princesa Isabel não assinou carteira de trabalho'
O problema maior é que a maioria não tem contratos formalizados. A carteira assinada ainda é muito rara para as domésticas, mesmo sendo um direito assegurado desde 1972 e reforçado pela Constituição de 1988.
Somente em 2015, quando foi sancionada a lei complementar 150, que regulamentou a Proposta de Emenda Constitucional conhecida como PEC das Domésticas, houve a igualdade de direitos trabalhistas entre domésticas e os demais trabalhadores, garantindo benefícios como FGTS, seguro desemprego, horas extras e outros.
É por isso que dizemos que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas não assinou nossa carteira de trabalho. São 85 anos de organização das domésticas no Brasil, com muitos enfrentamentos e resistência deste Brasil que quer permanecer na escravidão, submetendo essas mulheres, na maioria negras, a todo tipo de violência
Creuza Maria de Oliveira, da Fenatrad e do Sindoméstico
Violências que Creuza de Oliveira, 63, sofre desde a infância, quando começou a trabalhar como babá antes dos dez anos de idade, no interior da Bahia.
"Eu era uma criança e já cuidava de outras crianças, além de fazer todos os serviços de limpeza da casa. A minha refeição era o que sobrava dos pratos dos filhos da patroa. Ela jogava um caldo quente por cima e me entregava."
Creuza nasceu em Salvador, mas se mudou para Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia, ainda criança, com sua mãe e dois irmãos, após a morte do seu pai.
A partir daí sofreu humilhações, assédios e violências, enquanto sua força de trabalho era explorada no cuidado das casas e das vidas de quem a oprimia.
"O trabalho doméstico gera saúde, educação, limpeza e bem-estar para os patrões. A doméstica repõe a força de trabalho de outro trabalhador que, quando chega em casa, encontra um lar limpo, uma comida pronta, os filhos cuidados. Enquanto a doméstica retornará para sua casa e enfrentará outra jornada e ainda tem que lutar por dignidade."
"Quem cuida de quem cuida" é o título da campanha da Fenatrad para a dispensa remunerada das domésticas durante a pandemia, já que esse serviço não pode ser considerado um trabalho essencial. "Essenciais são nossos direitos e nossas vidas."
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