André Santana

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Opinião

Claudia Leitte deveria trocar também o axé music pelo gospel

A cantora Claudia Leitte, mais uma vez, fez sua fé pessoal falar mais alto e trocou o nome da orixá Iemanjá, divindade da religiosidade de matriz africana, por "Yeshua", o nome de Jesus em hebraico.

O fato ocorreu no último sábado (14), no Candheal Guetto Square, espaço, intimamente vinculado às expressões da cultura negra e das tradições religiosas do Candomblé.

Nada disso importou ou impediu que a cantora alterasse a letra da canção, dando lugar à intolerância e à negação de um elemento cultural tão rico e presente na música da Bahia.

O ato revela um profundo desrespeito às tradições afro-brasileiras, que foram responsáveis por preservar muitas das heranças culturais trazidas pelos povos africanos escravizados, incluindo a musicalidade que hoje é a base de ritmos tão populares como o axé music.

Além de muitas críticas, rapidamente surgiram nas redes sociais uma série de outras performances da artista distorcendo citações relacionadas à religiosidade afro-brasileira para exaltar sua devoção cristã.

Ao que parece, a artista se converteu à religião evangélica em 2012 e, desde então, ou talvez até antes por alguns registros divulgados, vem fazendo essa distorção como se querendo fazer dos seus shows uma pregação.

Claudia Leitte deveria abandonar o gênero do axé music, ricamente embasado pela força percussiva de origem africana e com muitas letras que exaltam as divindades negras, e se dedicar a cantar louvores, fazer testemunhos de fé e aderir à onda gospel que ganha força no mercado musical brasileiro.

Atitude é negação e desrespeito

A alteração nas canções é uma postura de negação e reforça a intolerância religiosa que vem ganhando força no Brasil, especialmente alimentada por vertentes neopentecostais que frequentemente atacam e demonizam manifestações religiosas de origem africana.

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Claudia Leitte já demonstrou, em outras atitudes, seu vínculo a um movimento não só religioso, mas sobretudo político e de disputa de poder, pautado no conservadorismo e desrespeito à diversidade.

O gesto é um reflexo de como a ignorância sobre a importância e o valor dessas tradições cresce no Brasil, perpetua o racismo religioso e contribui para a marginalização das culturas negras.

Escrevemos aqui na coluna, em 2022, sobre o alinhamento da cantora às pautas conservadoras e armamentistas que já causavam danos à política e à democracia.

Claudia Leitte: alinhamento com armas é recompensado com Réveillon na Bahia

Ao adotar essa postura, a cantora demonstra dificuldade em separar uma expressão cultural, como a música festiva, de sua crença pessoal, preferindo impor sua visão religiosa de forma excludente. É lamentável que ela ignore as raízes afro-brasileiras que sustentam o gênero musical que lhe deu projeção e dinheiro.

Axé music nasce da cultura percussiva negra

Criado na década de 1980, na efervescência do industrial musical vinculada ao Carnaval de Salvador, no turbilhão de outros gêneros como o frevo, o fricote, o ijexá e especialmente o samba reggae, o axé music foi a engrenagem que expandiu a carreira de artistas baianos para todo o território nacional, ocupando rádios e programas de tv, além das festas e carnavais fora de época em diversas cidades do país.

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A força da união entre o som eletrizante da guitarra baiana com a cadência dos ritmos percussivos, elaborados pelos tambores da tradição religiosa afro-baiana, gerou mais que um gênero musical, um movimento cultural e um negócio que continua com uma forte influência no cenário brasileiro, passados 40 anos.

O axé music, que nasceu como uma celebração da alegria, da resistência e da diversidade cultural baiana, carrega em sua essência a ancestralidade africana. Negar ou substituir isso é desvalorizar a própria história que possibilitou sua carreira.

A atitude da cantora foi condenada por muita gente, inclusive pelo secretário de Cultura e Turismo de Salvador, Pedro Tourinho, que mesmo sem citar nomes, comentou o fato em seu perfil em rede social:

"Quando um artista se diz parte desse movimento, saúda o povo negro e sua cultura, reverencia sua repercussão e musicalidade, faz sucesso e ganha muito dinheiro com isso, mas, de repente, escolhe reescrever a história e retirar o nome de Orixás das músicas, não se engane: o nome disso é racismo", escreveu Pedro Tourinho.

A postagem de Tourinho recebeu o apoio da cantora Ivete Sangalo, que comentou com emotion de aplausos. O lugar relevante ocupado por Ivete na indústria musical do Brasil representa bem a força do axé music e seu poder de adaptação aos novos movimentos culturais brasileiros. Os concorridos e caros blocos puxados por estrelas da axé music como Bell Marques, Ivete e a própria Claudia Leitte, com muitas marcas patrocinadoras associadas e atenção das câmeras da mídia nacional, revelam que o gênero ainda resiste economicamente.

Cantora deveria se dedicar à música gospel

Se para Claudia Leitte a música deve ser exclusivamente louvor religioso, seria mais coerente que ela migrasse para o gênero gospel, que está em ascensão no mercado brasileiro e possui grande apelo midiático.

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Assim, ela poderá expressar sua fé sem desrespeitar tradições que não compartilha, mas que merecem respeito e reconhecimento, e ainda estará mais próxima de outras pautas conservadoras defendidas por religiosos intolerantes como ela demonstra ser.

É fundamental que figuras públicas entendam a responsabilidade que têm em suas falas e ações, especialmente em um país tão diverso como o Brasil, onde a pluralidade cultural e religiosa deveria ser motivo de orgulho, não de exclusão.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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