André Santana

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Opinião

Em 2024, a violência fardada não cansou de repetir: 'Ainda estou aqui'

O cinema resgatou a torcida brasileira em torno de uma produção nacional. O filme "Ainda Estou Aqui" lotou salas de exibição e repercutiu nas redes, exaltando um orgulho brasileiro pelos talentos da nossa dramaturgia, mas também pela nossa resistência ao autoritarismo.

O desempenho espetacular da atriz Fernanda Torres, na pele da mulher que vê a felicidade da sua família ruir por conta da ditadura militar, e o resgate da história de Eunice Paiva, que enfrentou os militares em busca do marido desaparecido, são motivos suficientes para justificar o sucesso do filme que conquistou os brasileiros neste ano.

Mas ainda há mais razões para o filme de Walter Salles ser tão apropriado para o momento atual do país. É que todos os dias, a violência fardada, financiada pelo Estado brasileiro, nos diz brutalmente que "ainda está aqui".

Como herança da simpatia histórica das elites nacionais pela imposição do poder pela força das armas, evidenciada nos anos de suspensão das liberdades e ataques à democracia, presenciamos instituições como as Forças Armas a conspirar contra o Brasil e as polícias militares a instituírem a barbárie em operações nas favelas e comunidades pobres.

Enquanto os brasileiros prestigiavam a reconstituição ficcional da história de uma família que se insurgiu contra a ditadura, a Justiça mostrava a vergonhosa trama de militares de alta patente para manter um governo reprovado nas urnas e, neste mesmo momento, muitas outras famílias choravam a dor da violência imposta por agentes policiais treinados para humilhar, bater e atirar antes de qualquer defesa.

Em 2024, o Brasil foi novamente confrontado com o fantasma do autoritarismo. Episódios de violência policial, a descoberta das tentativas de golpe por parte de membros das Forças Armadas e um aumento nos ataques ao Estado Democrático de Direito trouxeram à tona o fato de que as heranças da ditadura militar continuam moldando nossa sociedade.

O filme "Ainda Estou Aqui", aplaudido em festivais pelo mundo, tornou-se um marco cultural ao abordar justamente essas questões, oferecendo um espelho inclemente de nossa história recente.

Se há 40 anos, o Brasil tentava retornar à normalidade democrática, há apenas dois anos, as eleições presidenciais eram decisivas para barrar um modelo de gestão pautado na violência, na desqualificação das instituições e na perseguição aos direitos fundamentais.

O filme como denúncia histórica

O contraste entre o ambiente de leveza e liberdade no convívio familiar e a atmosfera de medo, poucas perguntas e quase nenhuma resposta após o sumiço do pai provoca a inconformidade diante daquela situação, mesmo antes de relacionar com todos os prejuízos à democracia e ao país, que já sabemos que a ditadura causou. É um drama familiar capaz de sensibilizar em cada espectador memórias das tantas injustiças vivenciadas no Brasil.

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"Ainda Estou Aqui" é centrado em uma família de pessoas privilegiadas, que moram em frente ao mar do Rio de Janeiro, possuem empregada doméstica, automóvel e podem viajar para o exterior. O patriarca é o engenheiro civil e ex-deputado federal Rubens Paiva, que tentava apoiar os militantes que se insurgiam contra o regime ditatorial implantado no Brasil pelo golpe de 1964.

Brancos e ricos, é óbvio que há diferença na abordagem militar na residência dos protagonistas. Da mesma forma como ainda hoje os agentes de segurança cuidam em não invadir com chutes, pontapés e tapas na cara, quando atuam em áreas consideradas nobres, diferente da brutalidade que marca as operações em comunidades onde moram os pobres e pretos do país.

Mesmo com recurso econômico e acesso a canais para ecoar sua dor, o drama de Eunice se assemelha às de centenas de mulheres que buscam pelo paradeiro de parentes que cruzaram com a violência provocada por aqueles que deveriam proteger a sociedade.

Como mostra o estudo "Vozes da Dor, da Luta e da Resistência das Mulheres/Mães de Vítimas da Violência de Estado no Brasil" ainda é prática no país o "sumiço" de cidadãos vítimas do poder fardado.

Apesar do recorte e de sutis diferenças, a mensagem central do filme é clara: a violência de Estado não é um episódio isolado. É uma chaga que persiste fazendo vítimas diariamente e impedindo a plena cidadania no Brasil.

A persistência da violência fardada

Os fatos noticiados em 2024 comprovam a atualidade do tema abordado pelo filme. Entre os eventos mais alarmantes estão a tentativa de golpe militar contra o governo democraticamente eleito, com planos inclusive de assassinato de autoridades, em uma repetição sombria das práticas golpistas do passado.

Somada a isso, a violência policial em 2024 se agravou em casos de abusos de poder, tortura, cidadão jogado de ponte e assassinatos cometidos por policiais, em especial contra jovens negros e periféricos.

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É a continuidade de uma cultura autoritária nas instituições de segurança. O filme e os eventos contemporâneos revelam que muitas práticas autoritárias e mecanismos de repressão implantados durante a ditadura nunca foram completamente desmantelados.

Os dispositivos de segurança pública mantidos desse período, com políticas que priorizam a repressão em vez da prevenção e educação, fazem jorrar sangue diariamente nas favelas.

Além disso, a memória histórica — ou a falta dela — é um fator crucial. Discursos extremistas ainda se propagam distorcendo o que ocorreu durante a ditadura, contribuindo para a perpetuação de narrativas que justificam o autoritarismo. Bem como as coberturas sobre as operações policiais ainda falham em considerar apenas a versão policial, sempre justificada pela troca de tiros e pelos antecedentes das vítimas da bala do Estado.

Vítimas da bala do Estado

A violência policial expõe a inoperância dos governos e das políticas de segurança pública que, associadas ao racismo, falham em proteger a vida e legitimam a letalidade policial. Infelizmente, não se trata de um problema exclusivo de governos de direita.

Exemplo disso, é que tanto a administração do PT na Bahia quanto a do Republicanos em São Paulo têm acumulado casos de violência e permissão ao uso excessivo da força, com impactos especialmente para as comunidades negras.

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A Bahia, estado com a maior população negra do Brasil, e São Paulo, onde opera a maior força policial do país, convivem com práticas policiais que desconsideram os direitos humanos e reforçam uma cultura histórica de violência fardada institucionalizada.

No dia 1º de dezembro, mais duas mães, que não são Paiva, se juntaram às estatísticas das famílias destroçadas pela violência da polícia.

Em Salvador, um vídeo flagrou o momento em que os jovens Gabriel Santos Costa, 17, e Haziel Martins Costa, 19, foram rendidos e baleados por um policial militar no bairro de Ondina, na orla da cidade.

Nas imagens, que atestam o crime, o policial xinga os jovens, ordena que coloquem o rosto no chão e as mãos na cabeça, eles obedecem, são revistados e, mesmo já rendidos, são atingidos com mais de dez tiros disparados pelo agente, que alegou legítima defesa.

Gabriel morreu na hora. Haziel foi socorrido em um hospital e morreu no dia 26 de dezembro. O policial continua respondendo em liberdade. A Polícia Militar da Bahia informou que o agente foi afastado das ruas e realocado para a área administrativa até o fim das investigações da Polícia Civil.

Câmeras também registraram o assassinato de Gabriel Renan da Silva Soares, 26, alvejado por mais de dez tiros por um policial militar de São Paulo, quando tentava furtar itens de limpeza de um mercado na zona sul paulistana, no dia 3 de novembro.

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O PT baiano administra o estado há 18 anos, período de aumento da letalidade policial e do genocídio da população negra. Mas o governador da Bahia não gosta de ser questionado sobre o assunto e até já foi filmado, literalmente, correndo após uma pergunta de um jornalista sobre a segurança pública no Estado.

Já em São Paulo, o governo finalmente admitiu a crise de insegurança com o aumento de assassinatos e denúncias contra policiais. Tarcísio de Freitas, inclusive, admitiu tardiamente que estava errado ao ser contra as câmeras no fardamento das polícias. O governo paulista acaba de ser denunciado na OEA (Organização dos Estados Americanos) pelo excesso de violência nas operações policiais. A denúncia, assinada por 60 organizações de direitos humanos, foi protocolada no dia 20 de dezembro.

Pesquisadores dedicados ao tema denunciam que a retórica das autoridades tem efeito preponderante sobre os policiais e os discursos populistas sobre uso da força acabam por se voltar contra a própria tropa.

O Brasil de "Ainda Estou Aqui" superou as piores ameaças às liberdades políticas, retomou o papel das instituições e da sociedade civil, reeditou uma Constituição cidadã, recontou sua história, feitas de diversas Eunices, mas ainda tem muito a caminhar. Como o filme sugere, é preciso coragem para enfrentar o autoritarismo institucional que alimenta a violência cotidiana.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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