André Santana

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Nos 40 anos do axé, Daniela Mercury exalta orixás em tempos de intolerância

O ano de comemoração pelos 40 anos de criação do axé music -- movimento musical nascido no Carnaval de Salvador -- começou ontem (1º) com uma grande homenagem reunindo diversas estrelas em um dos principais cartões postais da cidade, o Farol da Barra.

O projeto Pôr do Som, comandado por Daniela Mercury, completou 25 anos, sempre saudando o primeiro pôr do sol do ano com um show aberto e cheio de novidades.

Neste ano, o espetáculo foi ainda mais especial por percorrer quatro décadas de canções que conquistaram o país e difundiram o ritmo criado da mistura entre as músicas dos trios elétricos com o som dos tambores dos blocos negros de Salvador.

No palco, um encontro das vozes que imortalizaram hinos inesquecíveis que ainda hoje dão o tom do verão e das folias carnavalescas na capital baiana e em outras cidades que se rendem ao axé music.

Foi uma mostra da inventividade do gênero, que perdeu espaço no mercado musical especialmente pela força da agro music. Mas também por escolhas comerciais e estéticas de artistas e empresários baianos, que passaram a apostar em outras sonoridades e temáticas, deixando de lado elementos da cultura e religiosidade negras tão fortes na vivência das ruas da Bahia.

O Pôr do Som exaltou a força criativa de uma musicalidade disposta a celebrar as danças e ritmos populares, enquanto fala de amor, de fé e de resistência a opressões.

1.jan.2025 - Festival Pôr do Som celebra 40 anos do axé music
1.jan.2025 - Festival Pôr do Som celebra 40 anos do axé music Imagem: André Santana/UOL

Novas e antigas vozes da música da Bahia

Entre os artistas convidados por Daniela Mercury estavam: Márcia Freire, a insubstituível vocalista da banda Cheiro de Amor; Márcia Short e Robson, que brindam o público com o retorno da banda Mel; Pierre Onassis, voz que embalou grandes sucessos do Olodum; o cantor e percussionista Márcio Victor do Psirico, além de Margareth Menezes e Carlinhos Brown, que juntos com a anfitriã conduziram os momentos mais vibrantes da noite.

Brown, inclusive, é autor de boa parte das canções que formaram o setlist do show, como "Meia Lua Inteira", "Selva Branca", "Rapunzel", "Dandalunda", "Maimbê Dandá", "Obrigado Axé", entre outras .

Representando a nova geração da música da Bahia, a cantora Rachel Reis, do hit "Maresia"; Ágatha Macêdo, que arrasou nos solos da guitarra baiana e a pequena Pietra, percussionista da banda Didá, garantindo pensar um futuro rico e diverso quanto à cultura negra.

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A importância do samba reggae e dos blocos afro para o axé music foi o tempo inteiro lembrada no palco pela presença do grupo percussivo Didá, criado pelo mestre Neguinho do Samba, que junto com a arte, levou dignidade para a vida de meninas e mulheres do Centro Histórico de Salvador.

Daniela, com uma incrível energia e preocupação cênica, conduziu as quase quatro horas de espetáculo -- contou histórias de bastidores e das inspirações para as canções, fez duetos com os convidados, dançou com seu balé, discursou em favor da democracia e da liberdade, apresentou sucesso do seu repertório, além de ceder seu palco para que os outros protagonistas cantassem essa trajetória de 40 anos.

O público vibrou, saudoso, ao lembrar grandes sucessos como "Baianidade Nagô" ("já pintou verão, calor no coração, a festa vai começar"); "Auê" ("é um auê ê encontrar você, pra poder fazer um carinho assim"); "Deusa do Amor" ("tudo fica mais bonito você estando perto"); "Protesto Olodum" ("força e pudor, liberdade ao povo do Pelô") e muitos outros.

Não faltou a icônica interpretação de Margareth para "Faraó, Divindade do Egito", música escrita em 1987 por Luciano Gomes para o Olodum, um marco do samba reggae e do reconhecimento das heranças africanas no Brasil.

Um coro de mais de 60 mil vozes respondeu ao comando da ministra da Cultura, reproduzindo, em frente ao Farol da Barra, uma cena já clássica que se repete a cada Carnaval, já que essa é uma das canções que não podem faltar na folia.

Do local para o global

Difícil de acreditar, mas o Pôr do Som correu risco de não acontecer.

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No final do ano passado, Daniela Mercury e seus fãs foram surpreendidos pelo anúncio da programação do Festival da Virada, promovido pela Prefeitura de Salvador em outro ponto da orla da cidade e que, nos últimos dez anos, incorporou o show do primeiro dia do ano.

A gestão municipal alegou que, por estratégia turística, decidiu limitar a grade do festival entre 27 e 31 de dezembro e ofereceu outra data para Daniela realizar sua apresentação. A cantora conseguiu, contudo, patrocínio do governo do estado para realizar o projeto no local original e com transmissão ao vivo pela televisão pública.

É provável que questões políticas tenham influenciado, já que Daniela é muito alinhada ao grupo político que governa a Bahia (e o Brasil), adversário da gestão municipal nas disputas eleitorais.

Ela foi a artista da Bahia que mais se posicionou contra o autoritarismo do governo bolsonarista e comandou protestos do "Ele Não", enquanto muita gente ficou em cima do muro.

Mas há também decisões determinadas pelo poder econômico que dominam o mercado musical e definem a grade das programações dos festivais, dos grandes shows e até do Carnaval.

É inevitável a comparação entre o Festival da Virada — com representantes da música da Bahia, mas dominado por artistas sertanejos e alguns de sucessos momentâneos viralizados na internet — com o Pôr do Som, que priorizou talentos locais, que espalharam o sucesso da música da Bahia pelo mundo e afirmaram o orgulho do povo baiano pelos ritmos e expressões da cultura negra.

É de se questionar se o investimento do poder público tem mais serventia se direcionado para a valorização da cultura dos artistas da terra, que atraem o interesse de visitantes e do público local ou na contratação de nomes já celebrados pela indústria musical e que, portanto, já têm garantido espaço midiático e contratos milionários em diversos outros festivais Brasil afora.

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Respeito à religião de matriz africana

Daniela Mercury abriu o show com "É d'Oxum", ijexá composto por Gerônimo Santana e Vevé Calasans, seguida pela inédita "O Axé é Salvador", feita para homenagear o axé music e reafirmar o respeito às entidades das religiões de matriz africana tão presentes na fé da população da Bahia.

Em um momento de tantas denúncias de intolerância religiosa e de artistas neopentecostais que exploram a cultura negra, mas preferem ocultar as referências aos orixás nas canções, Daniela fez questão de cantar para os deuses e deusas das religiões de matriz africana.

Ela e Margareth discursaram contra o racismo, pediram respeito à história do povo negro e cantaram para Iansã, para Dandalunda, para os erês e, todos os artistas se juntaram na canção "Ashansú", do repertório de Carlinhos Brown, que saúda Obaluaiyê.

O encerramento aconteceu com "Canto da Cidade", da parceria de Daniela com Tote Gira. A música de 1992 despertou a atenção do país para a performance da artista, que sempre priorizou no palco a dança e os elementos da cultura negra, por seu olhar interessado na musicalidade produzida nas quadras dos blocos afro como o Ilê Aiyê, o Olodum, o Malê Debalê e o Muzenza.

Se ainda há uma certa desconfiança em relação à apropriação comercial da cultura negra por artistas brancos, ainda mais em tempo de empoderamento negro, fez muito mais sentido a diversidade de artistas reunidos, quase todos negros, entoando juntos o refrão que diz: "A cor dessa cidade sou eu / O canto dessa cidade é meu".

O Pôr do Som concretiza uma profecia feita na música "Farol da Barra", composta por Caetano Veloso e Luiz Galvão e imortalizada pelos Novos Baianos.

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"Até o ano 2000, o Farol além do pôr-do-sol será o pôr-do-som", diz a canção que inspirou o nome de um dos projetos mais importantes para a preservação da música da Bahia, forjado pelos jeitos de viver, resistir e celebrar do povo negro deste lugar.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do informado na primeira versão desta coluna, a música "Farol da Barra" não integra o disco Acabou Chorare, da banda Novos Baianos.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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