Violência contra negros torna urgente criminalização do racismo em Portugal
O assassinato do comerciante de origem cabo-verdiana Odair Moniz, 43 anos, por agentes da PSP (Polícia de Segurança Pública) em Amadora, cidade da região metropolitana de Lisboa, no dia 21 de outubro, causou protestos e evidenciou a necessidade urgente do racismo ser criminalizado em Portugal.
Versões contraditórios circularam pelas redes sociais e, motivadas pelo ódio racial e xenofobia, tentaram apontar a vítima como um criminoso. As próprias autoridades policiais foram a público desmentir suposições de uma perseguição após furto de veículo e, ao contrário, confirmaram ser Odair o proprietário do carro que dirigia no momento da abordagem que resultou na sua morte.
A CNN Portugal apurou que a investigação do caso pela polícia judiciária portuguesa sugere ter havido uso desproporcional e injustificado de força, com recurso a meios letais. Além disso, os dois agentes da polícia envolvidos na morte de Odair Moniz reconheceram que não foram ameaçados pela vítima com uma faca.
Esta foi uma das mentiras que alimentaram discursos justiceiros e racistas na internet, reforçados por informações da imprensa, essas verídicas, do histórico criminal de Odair. Ele teria respondido à Justiça por roubo, receptação e condução sob o efeito de álcool, tendo cumprindo 13 meses de prisão há oito anos.
Desde então, sua ressocialização incluía a ocupação em um café, que abriu no bairro de Zambujal, em Amadora, onde morava com a esposa e dois filhos.
Apesar de ser confrontada por gravações em vídeos e relatos de testemunhas, a defesa dos agentes continua a alegar legítima defesa e cumprimento dos procedimentos aos quais foram treinados.
Entidades querem a criminalização do racismo em Portugal
A organização SOS Racismo emitiu nota denunciando que a morte de Odair acontece em um contexto político de exacerbação do discurso de ódio dirigido às comunidades negras e a infiltração da polícia na extrema-direita.
"O SOS Racismo denuncia um padrão de intervenção policial que opta por uma espécie de exceção jurídica em que a violência e a morte nos territórios e corpos habitados por pessoas negras passam a ser uma regra", diz a nota da entidade.
Em 2023, o SOS Racismo recebeu 106 relatos de discriminação, sendo a maioria das denúncias atribuídas a agressões racistas praticadas por pessoas próximas às vítimas e pela polícia.
O SOS Racismo integra a campanha "Vamos criminalizar o racismo", lançada em 21 de março de 2024, Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação, que visa propor ao Parlamento português uma alteração da lei de combate ao racismo.
O Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e Xenofobia, que reúne cerca de 70 coletivos, tem provocado uma discussão sobre a criminalização do racismo, da xenofobia e da injúria racial no pais.
"O objetivo último é a criminalização das práticas racistas que, em Portugal, não existe. A maioria das pessoas pensa que o racismo é um crime em Portugal, mas as práticas racistas não são crime, são apenas uma contraordenação", explica a jurista Anizabela Amaral, da Kilombo - Plataforma de Intervenção Anti-Racista.
Os casos já previstos no artigo 240 do Código Penal português são considerados ilícitos de mera ordenação social, cuja sanção aplicável é uma 'coima', espécie de multa de valor reduzido.
"Nós pretendemos que as práticas racistas que estão previstas como contraordenação sejam criminalizadas e que as sanções possam ir até às penas de prisão", completa a jurista que integra o Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e Xenofobia.
Anizabela aponta que há estudos que confirmam o aumento dos casos de racismo e xenofobia em Portugal, que se evidenciam na eleição de políticos da extrema direita com discursos de ódio racial.
"O racismo e a xenofobia não foram inventados pela extrema-direita e não foram criados pelas organizações que lutam contra o racismo. É uma situação histórica, com raízes muito profundas na colonização, na escravatura e, portanto, já existem há muito tempo. Agora estão a tornar visíveis que a população portuguesa, na sua maioria, é racista e xenófoba", confirma.
A jurista ressalta, contudo, que Portugal tem um problema sério de racismo estrutural e institucional e, portanto, não está afirmando que todo e qualquer português é racista, mas que existe toda uma estrutura que faz com que alguns grupos tenham prioridade a outros em todas as áreas da sociedade.
Multidão vai às ruas exigir Justiça
Além de manifestações em comunidades de maioria negra, como Zambujal e Cova da Moura, onde ocorreu a morte de Odair Moniz, uma grande marcha foi realizada no centro de Lisboa, no último sábado (26), reunindo associações comunitárias e organizações sociais.
No mesmo dia, uma outra manifestação, convocada pelo Chega, partido da extrema direita, em apoio aos policiais e condenando os atos de protesto nas comunidades que, ao longo da semana, resultaram em incêndios de veículos, além de repressão da polícia e prisões.
"O que acontece aqui não é um caso isolado. A história de matar pessoas negras é uma história que não foi interrompida, porque é a mesma estrutura que foi edificada sobre o nosso corpo através da escravatura e que foi alimentada pelo colonialismo e que ainda continua a nos matar", denuncia o rapper Flávio Almada, um dos coordenadores do movimento Vida Justa.
Licenciado em tradução e escrita, Flávio Almada tem mestrado em estudos internacionais e, assim como Odair, nasceu em Cabo Verde. Ele diz que sentiu na pele agressões da polícia. Ele é morador da Cova da Moura, uma das comunidades negras estigmatizadas pela violência e descaso institucional, cuja ação governamental é restrita à operações policiais.
"A polícia executou o nosso irmão Odair Moniz e não é o primeiro. Temos uma longa lista. Maior parte é de jovens que não chegam até 20 anos, do sexo masculino, que são mortos. Essa é uma parte da morte, que é mais visível, mas há uma morte na penitenciária, que não é vista. Há uma morte, que é pela pobreza, que não é vista. Há um conjunto de mortes que acontecem por falta de habitação e pela miséria que não é vista. Nós estamos aqui para sinalar que nós queremos justiça, não só de um ponto de vista legal, mas de uma mudança estrutural", pontua Almada.
Racismo precisa ser criminalizado
Essa mudança estrutural apontada pelo ativista passa pelo reconhecimento, por parte da sociedade e do governo de Portugal, das consequências da história de colonização e exploração imposta a nações na África, Ásia e nas Américas, gerando violência, miséria e dependência econômica.
"O processo de desumanização do ser humano negro e essas questões relacionadas com a violência policial não são isoladas. O movimento de associações civis daqui vem denunciando as instituições competentes do país, questionando esses modus operandi de pensar e de agir contra essas populações. O que se passa é que, de fato, pouco se vê de respostas efetivas", reforça a antropóloga e arte educadora, Rita Cássia Silva, brasileira radicada há mais de 20 anos em Portugal.
"O racismo tem que ser criminalizado de fato aqui no país", defende Rita Cássia da Femafro (Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal).
"Se as pessoas não sentirem verdadeiramente uma condenação das suas práticas racistas em termos jurídicos, em termos judiciais, será muito difícil conseguirmos avançar. Por isso é que é mesmo urgente criarmos um sistema que possa punir severamente o racismo. Além das cotas étnico-raciais, a implementação da educação antirracista nas escolas, a revisão dos manuais escolares, é todo um trabalho que está por fazer que é muito urgente", defende Anizabela Amaral.
A jurista adiantou para a coluna que um documento pela criminalização do racismo está sendo finalizado e a meta é torná-lo público no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Será necessário, então, o recolhimento de 20 mil assinaturas digitais em apoio à Iniciativa Legislativa Cidadã para que haja a obrigatoriedade da apreciação pela Assembleia de República.
Por enquanto, mais de 117 mil assinaturas já foram reunidas em uma outra petição pública associada à queixa-crime contra André Ventura, líder do Chega, e mais dois membros do partido da extrema direita de Portugal, por declarações após o assassinato de Odair Moniz.
Os políticos teriam feito elogios aos policiais e sugerido condecorações aos agentes em agradecimento pelo "trabalho" realizado. Os signatários da petição, direcionada à Procuradoria-Geral da República, consideram as declarações "instigação e apologia da prática de crime" e "incitamento à desobediência coletiva".
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