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Quem tem autoridade para identificar indígenas?
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Por Manuela Carneiro da Cunha
A Funai pretende se arrogar a autoridade de definir quem são os indígenas merecedores das políticas públicas do Estado, por meio de uma resolução - a de nº 4, de 22 de janeiro de 2021.
Chegou-me há poucos dias o parecer da Procuradoria Jurídica da Funai que teria fundamentado essa resolução. Como o tal parecer me cita extensa e elogiosamente, cabe-me declarar que as citações literais de meus textos são fiéis, mas que de nenhuma forma justificam a resolução emitida pelo órgão.
A questão central está posta: quem tem autoridade para identificar indígenas?
Desde 2004, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, está em vigor no Brasil. Ela se aplica a povos tribais e a povos indígenas.
E como se reconhecem povos indígenas e tribais? O artigo 2 da Convenção é claro: "A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção". O critério fundamental para o reconhecimento de um povo indígena é, portanto, a autoidentificação.
Uma vez assente quem são os povos indígenas, como se pode reconhecer os indivíduos indígenas? São, evidentemente, indivíduos que se consideram membros de um determinado povo e são reconhecidos por esse povo, com seus critérios e instituições. O controle social é dos próprios indígenas. Quem, por conseguinte, é autorizado a colocar em dúvida, infirmar ou confirmar a identidade de um ou uma indígena são as instituições do povo indígena com o qual se identificam.
Esse procedimento já é prática na maior parte das universidades que garantem cotas para indígenas. A veracidade da informação de um candidato a essas cotas é atestada por uma ou mais autoridades de seu povo, e, ainda, é controlada de modo menos formal, mas igualmente eficaz, pelos demais candidatos do mesmo povo.
O histórico da Funai não recomenda as definições que, vez por outra, ela enuncia, e muito menos ainda no atual momento. Outro exemplo é elucidativo: através de medida infralegal, a Instrução Normativa nº 9, de abril de 2020, a fundação tenta deixar de reconhecer seus deveres referentes a terras indígenas que o Estado ainda não demarcou, como deveria ter feito. Essa omissão diante de um preceito constitucional coloca o Estado em mora de 27 anos, mas não altera a existência de Terras Indígenas tradicionalmente ocupadas, declaradas no artigo 231 da Constituição. Deixar de considerar parte delas e retirá-las do Sistema de Gestão Fundiária do Incra, como se decidiu, abriu caminho para legalização de invasões.
A Funai está, assim, empenhada em eliminar direitos, com o velho expediente de tentar apagar, no papel, os titulares desses direitos.
Por fim, lembremos o dever de consulta prescrito ao governo no artigo 6º da Convenção da OIT 169, e que sequer foi aventado pela Funai: é obrigação dos governos "consultar os povos interessados mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente povos indígenas".
Uma medida administrativa como a de poder identificar indígenas dignos de receber serviços públicos certamente requereria consulta.
Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, é antropóloga, professora titular aposentada da USP e professora emérita da Universidade de Chicago.
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