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OPINIÃO

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Shaperville, uma lição para não ser esquecida

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Imagem: Divulgação

23/03/2021 10h00

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Por José Vicente

No massacre de Shaperville (África do Sul), em 21 de março de 1960 - que posteriormente a Organização das Nações Unidas transformou no dia Internacional de Luta contra a discriminação racial - a questão que assombrava a todos era o fato de que os atos do apartheid que autorizava as forças policiais a atirar contra os cidadãos negros sul-africanos, e que naquele caso resultara em quase uma centena de homens, mulheres e crianças mortas, estava ancorada na lei e avalizada pelo sistema de Justiça.

Mas como isso poderia ser possível em um mundo que acabara de desfraldar a bandeira dos direitos humanos como direito inalienável do cidadão e obrigação moral e ética do Estado? Como isso poderia ser possível em um pensamento politico e social ancorado nos fundamentos iluministas e, por conseguinte, na inegociabilidade do direito da vida, da liberdade e da igualdade?

Na célebre frase de Nelson Mandela, herói e símbolo da epopeica luta de libertação do Apartheid Sul-Africano, construiu-se a tradução e síntese do ensinamento e caminho para aquelas e tantas outras vitórias: "Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.

Se isso for um imperativo - e deve ser -, o que nos impediu até hoje de transformar o amor em uma verdade transformadora? Por que nossas utopias civilizatórias restam fragilizadas frente à opressão e à brutalidade de um sistema ideológico e político que escreve e se compromete com uma verdade, e pratica e realiza uma temeridade construída sobre dor?

Na Shaperville brasileira de todos os dias, o apartheid, da mesma forma que o sul-africano, é resultado de um aparato político ideológico que tem vida e sustentação, principalmente na distorção, na omissão, e sobretudo na operação preordenada do sistema da Justiça. Somente aquilo que se conhece e denomina como estado inconstitucional das coisas permite produzir, a partir da abstração da lei, um resultado final distinto decorrente da raça ou cor da pele.

Uma igualdade que não iguala e uma Justiça que faz concessão. O resultado final disso, no Brasil, é aquilo que se instituiu como apartheid informal. Não está nas leis, é proibido pela Constituição, mas é uma verdade nua e crua da realidade social.

Mudar esse estado de coisas obriga todos os interessados a entender que o método deve ser a ação, a presença e a assertividade, e nunca a omissão, o distanciamento e a neutralidade. Se aprendemos a apartar, precisamos ensinar a congregar, incluir, igualizar. Lavar as mãos diante da injustiça significa perpetuá-la.

No exato momento em que as balas das metralhadoras penetravam a carne dos homens, mulheres e crianças negras da favela de Sharpeville, na cidade de Johanesburgo, outras partes do mundo confirmavam com apreensão o que já se intuíra com inquestionável convicção: o desafio da implementação da Declaração Universal dos Direitos Humanos exigirá o esforço sobre-humano para todas as demais gerações.

O que veio depois permitiu que respirássemos aliviados sobre a viabilidade da reunir as capacidades da comunidade, sociedade e nações para transformar o imponderável. E, principalmente, sobre o testemunho da capacidade da luta e da resistência para transformar o imponderável num paradigma tão formidável. 32 anos depois, Shaperville alcançou a bonança, e os sul-africanos, livres e emancipados puderam iniciar o compromisso da construção de um país de iguais para todos.

Com luta, crença e determinação, é possível combater e vencer a Shaperville que nos enreda. Shaperville venceu.

José Vicente é membro fundador da Comissão Arns, advogado, educador e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares