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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tiroteios em escolas dizem muito sobre a sociedade norte-americana

Até 2012, o massacre de Columbine era o ataque mais mortífero em escolas da história dos EUA - Mark Leffingwell/AFP
Até 2012, o massacre de Columbine era o ataque mais mortífero em escolas da história dos EUA Imagem: Mark Leffingwell/AFP

Colunista do UOL

07/10/2021 04h00

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Segundo o banco de dados do jornal The Washington Post, mais de 256 mil estudantes viveram violência por armas de fogo em escolas norte-americanas desde o famoso ataque de Columbine, em 1999. Um levantamento feito pela CNN sugere que de 2009 a 2019 foram pelo menos 180 tiroteios em colégios, nos Estados Unidos. Nos nove primeiros meses em 2021 já houve mais incidentes desse tipo do que no ano passado inteiro: números do projeto "Everytown Research" apontam mais de 100 episódios, que já resultaram em mais de duas dezenas de mortos e centenas de feridos. O caso mais recente foi o de Arlington, no estado do Texas.

A recorrência desse tipo de notícias chama a atenção. Para além das tragédias isoladas, no entanto, esses são sintomas de chagas sociais profundamente estabelecidas. Os tiroteios em escolas refletem as mazelas de uma sociedade particularmente desigual, competitiva e violenta.

De acordo com o último censo publicado no início de 2020 nos Estados Unidos, a desigualdade no país já é a maior dos últimos 50 anos. Os números indicam que cerca de 35% do total da riqueza produzida esteja concentrada em 1% da população. A deterioração do mercado de trabalho, o desemprego estrutural e as quedas dos salários levaram a perdas reais para o trabalhador médio. Além disso, os Estados Unidos possuem o pior índice de pobreza do mundo desenvolvido.

Essas são informações particularmente relevantes quando estamos analisando uma sociedade que construiu sua própria narrativa identitária em torno de conceitos como "meritocracia" e o "self-made man" ("o homem que se faz por conta própria").

São variáveis que atingem em cheio não apenas a promessa do "sonho americano", como também revelam os severos danos colaterais que a crença cega no protagonismo individual pode causar. Não se trata de demonizar o espírito empreendedor ou ignorar a resiliência que o incentivo à competição pode trazer, mas de tornar o olhar sensível aos graves riscos a que se submete uma sociedade que vive de excessos.

Sabemos que a violência nas escolas deriva, em muitos casos, de patologias clínicas, inclusive psiquiátricas. Apesar disso, as doenças sociais também precisam de atenção. Bullying na infância. Padrões inatingíveis e cobranças por superação de expectativas na adolescência. Polarização política, baixa percepção de bem-estar e desesperança na vida adulta. Ansiedade, depressão, solidão. Medo, culto ao trabalho excessivo, dependência digital. Esse é o desalentador roteiro da vida de milhares de norte-americanos.

Se décadas atrás, o problema derivava de uma vida era orientada por disciplina, repetição e obediência, na "sociedade do desempenho", para usar uma expressão famosa do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, o imperativo é, cada vez mais, fugir dos rótulos ligados ao "fracasso pessoal". Como bem notou Han, estamos cada vez mais obcecados em parecer "descolados", cheios de propósito e de motivação, mas a nossa busca por autonomia e eficiência é, paradoxalmente, o que mais nos tem escravizado. A sociedade norte-americana está cada vez mais doente e exausta. Nós também.