Apesar da moderação no debate entre vices dos EUA, não se engane
O recente debate entre os candidatos a vice-presidência dos Estados Unidos trouxe um contraste interessante em relação aos espetáculos acalorados que temos visto nos debates presidenciais desse e dos últimos anos. Nessa ocasião, o foco não esteve em ataques pessoais ou tentativas de humilhar o adversário, mas em apresentar ideias e posições de forma mais comedida. Contudo, diferente do que muitos possam pensar à primeira vista, os acenos de gentileza, e até concordância em algumas matérias, definitivamente não significa que o país esteja diante da cura para a polarização que o assola.
Tudo foi treinado e calculado para esse encontro. Enquanto o foco de Tim Walz estava em desviar-se da responsabilização de Harris como candidata incumbente, ele precisava evitar qualquer erro que pudesse prejudicar sua chapa em um momento sensível - um furacão, uma greve de grades proporções, e uma guerra no Oriente Médio. J.D. Vance, por sua vez, tentava moderar suas posições para parecer mais centrista do que realmente é. Apresentou-se feito um novo personagem para o público que precisa conquistar e que desconhece seu histórico extremista.
Que o tom geral do debate foi visivelmente mais equilibrado e contido, todos estamos de acordo. No entanto, esse aparente comedimento está longe de significar o início de um processo de pacificação entre as chapas e os grupos sociais que elas representam.
Um dos temas centrais do debate foi a responsabilidade pelas dificuldades que os Estados Unidos enfrentam. De quem é a culpa pelas mazelas do país, afinal? Os candidatos evitaram respostas diretas e, em vez disso, preferiram transferir a responsabilidade entre si. J.D. Vance acusou Kamala Harris, atual vice-presidente, de falhar em resolver problemas de imigração e de estar à frente de um governo que "matou o sonho americano". Ele destacou a alta inflação e o que chamou de "desmantelamento" da economia sob Biden.
Por outro lado, Tim Walz acusou o Congresso do país de não colaborar para resolver crises graves, como a da imigração, por exemplo, e argumentou que o próprio Trump havia prometido resolver questões complexas, mas que não cumpriu as próprias promessas quando pôde. Ele também buscou dialogar diretamente com a classe média, abordando temas como o aumento no preço dos medicamentos e da moradia - questões que, segundo ele, o governo Trump teria ignorado em prol dos interesses dos mais ricos.
Quando o debate se voltou para questões de política externa, as diferenças ficaram ainda mais nítidas. Walz atacou Trump, chamando-o de uma ameaça à segurança nacional, destacando sua postura volátil em relação aos aliados dos Estados Unidos, como quando virou as costas para os parceiros tradicionais da OTAN e adotou uma postura conciliadora com líderes autoritários como Putin e Kim Jong-un. Walz também criticou a decisão de Trump de se retirar do acordo nuclear com o Irã, o que, segundo ele, vulnerabilizou os Estados Unidos.
Vance, no entanto, argumentou que Trump conseguiu manter a paz justamente porque o mundo tinha medo dele. Ele destacou que durante o governo Trump não houve grandes conflitos internacionais, uma evidência, segundo ele, da eficácia da liderança do ex-presidente em manter a segurança global.
Na reta final do debate, ao falarem sobre democracia, o 6 de janeiro e sobre resiliência das instituições, o roteiro quase foi abandonado pelos candidatos. Ali tivemos contato, efetivamente, com as profundas diferenças de visões de mundo que estão em confronto, com as chagas e com as cicatrizes que hoje marcam os dois partidos que disputam poder nos Estados Unidos. Vance tentou reescrever a história do negacionismo eleitoral de Trump. Walz voltou a reforçar que apenas os democratas podem preservar a democracia do país.
Dá para entender que tenhamos terminado a noite de ontem aliviados com o tom civilizado da discussão, mas é importante uma pitada de ceticismo em ocasiões como essa: ainda estamos vivendo na eleição que trata da política como circo.
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