Direto da Ucrânia: cinco lições após viver uma amostra da guerra
Passei uma semana na Ucrânia, em pleno período de escalada da guerra. Nesses dias, vivenciei a última leva de ataques massivos contra o país e a acusação ucraniana sobre o uso de um míssil que tinha características de um intercontinental pelos russos —o que seria algo inédito na história da humanidade.
Em Kiev, participei da conferência "Crimea Global: Understanding Ukraine through the South" (21-22 de novembro), que reuniu especialistas do Sul Global e da Cúpula Grain from Ukraine (23 de novembro), com a presença do presidente Zelensky e líderes mundiais.
Durante minha estada, conversei com autoridades do alto escalão, cidadãos, ONGs e atores internacionais. A partir desta experiência, compartilho cinco principais percepções sobre o atual momento do conflito:
1. A guerra não é apenas sobre território: é sobre identidade e sobre lidar com o próprio passado. Os ucranianos enfatizam que, além de recuperar territórios perdidos, precisam promover o que chamam de "descolonização cognitiva". Alertam sobre uma cartilha russa em execução no Donbass, semelhante ao aplicado na Crimeia. O objetivo, segundo eles, transcende a dominação territorial, buscando um apagamento identitário de longo prazo por meio da reescrita histórica e revisão da cultura e língua locais.
Descrevem um processo de "lavagem cerebral", que envolve narrativas específicas e benefícios econômicos para que ucranianos assumam passaportes russos e russos se mudem para territórios ocupados.
Este processo de "transfusão de cidadãos" engloba ainda, de acordo com organizações de direitos humanos: 1) deportação de crianças e adoção ilegal, 2) deportação massiva de povos originários, 3) colonização por assentamentos, 4) violações sistemáticas, incluindo perseguições e prisões políticas. Tais ações refletem, sob a ótica de Kiev, ambições imperiais/coloniais russas, que rejeitam reconhecer a Ucrânia como nação soberana.
2. A guerra é, além de tudo, psicológica: a sociedade ucraniana vive sob constante ameaça nuclear, amplificada por canais que disseminam caos e desinformação.
As atrocidades em territórios ocupados geram pavor generalizado, especialmente entre as mulheres. Na infraestrutura, os ataques visam interromper serviços essenciais —energia, água e aquecimento. Em Odessa, 80% da população já enfrentou blackouts, e mesmo ataques menores comprometem hospitais e asilos. Homens entre 18 e 60 anos permanecem no país pela possível convocação militar, com médicos, poetas e jovens sem experiência prévia já na linha de frente.
Famílias encontram-se fragmentadas, enquanto escolas funcionam em subterrâneos. Além do conflito terrestre, a população enfrenta guerra aérea diária, com drones e mísseis sobrevoando o território. Sirenes noturnas forçam evacuações para abrigos improvisados, frequentemente estações de metrô sem estrutura adequada, onde pessoas passam até 9 horas em temperaturas de -10°C.
A rotina tornou-se imprevisível, com qualquer atividade —reuniões, encontros, emergências— sujeita a interrupções para busca de abrigo.
3. A guerra é um problema para a segurança alimentar do mundo: a Ucrânia abastece mais de 70 países com grãos, cereais, flores e óleos diversos. O porto de Odessa é crucial nessa cadeia, mas enfrenta ataques constantes, assim como os sistemas de plantio e irrigação em Kherson.
Mudanças climáticas agravam a situação, comprometendo a produção agrícola. Perdas significativas em óleo de girassol e milho afetam tanto o PIB ucraniano quanto a economia mundial. O início do conflito paralisou portos e elevou custos de seguros e fretes. A "Black Sea Grain Initiative" de 2022, mediada por Turquia e ONU, trouxe alívio temporário até a retirada russa, que intensificou ataques regionais.
Atualmente, dos sete portos disponíveis, seis mantêm operações comerciais, enquanto a Rússia se apropria da produção em áreas ocupadas e já atacou embarcações de 15 nacionalidades diferentes.
4. A Ucrânia está preocupada com a posição do Sul Global: relação com países "não ocidentais" não é muito estruturada; é por ocasião, aleatória, mais com China, Brasil e alguns países do Magreb. A Ucrânia identifica isso como um ponto de vulnerabilidade e está se movimentando em relação a isso.
A Rússia alega que a Ucrânia é parte de um grande plano dos EUA e Europa. Querem mostrar que não é bem assim. Que há amparo nas instituições internacionais e que o Sul Global também está na mesa.
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Quero receberHá uma grande preocupação da Ucrânia com o peso e os impactos da propaganda russa nessas partes do mundo, sobretudo na América do Sul e na África. A Índia é vista, pelo alto escalão do governo ucraniano, nesse momento, como um país-chave para a negociação de paz.
5. Os ruídos de comunicação entre Brasil e Ucrânia passam por uma "crise de identidade" dos dois países: vivemos de estereótipos e, para além de agendas políticas, estamos perdidos em uma espécie de "lost in translation".
Vemos os ucranianos como aliados do Ocidente. Eles nos veem como "não ocidentais". Eles não são nem norte, nem sul, nem leste, nem oeste. Nós, somos, ao mesmo tempo, parte do "Sul Global" e ocidentais.
Poderíamos explorar muito mais essas particularidades de transitar por diferentes mundos. Poderíamos explorar, inclusive, um interesse comum de sermos reformistas da ordem —nós, porque somos um país poderoso sub-representado nas estruturas de governança global; eles, porque são as vítimas do fracasso de uma ordem internacional que não consegue dar respostas efetivas às ameaças vitais existentes.
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