Topo

Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Impasse entre China, Rússia e EUA barra poder da ONU para investigar Talibã

Talibã ateou fogo em mulher por "cozinhar mal", diz ativista afegã - Hoshang Hashimi/AFP
Talibã ateou fogo em mulher por 'cozinhar mal', diz ativista afegã Imagem: Hoshang Hashimi/AFP

Colunista do UOL

24/08/2021 11h49

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Resumo da notícia

  • Resolução aprovada no Conselho de Direitos Humanos da ONU não cria mecanismo de investigação independente
  • China, Rússia e Paquistão foram contrários a qualquer condenação explícita contra o Talibã
  • Ativistas e afegãos criticaram resolução, apontando que decisão é "vergonhosa" e um "insulto"

Rachada, a comunidade internacional aprova uma resolução fraca sobre a crise no Afeganistão, sem garantir a criação de uma estrutura formal para investigar os crimes do Talibã e monitorar as promessas do grupo fundamentalista. O texto aprovado foi denunciado por ativistas de direitos humanos como uma "vergonha" e "insulto" às vítimas afegãs.

O encontro no Conselho de Direitos Humanos da ONU ainda foi transformado em uma demonstração das divisões entre as principais potências internacionais.

A sessão foi convocada para aprovar uma resolução que concederia um mandato para a ONU poder investigar e monitorar os crimes cometidos pelo grupo fundamentalista. Mas, sem um acordo, o projeto de resolução não especifica de que maneira esse processo ocorreria e nem se um mecanismo especial seria criado.

O texto apenas pede que a ONU monitore a situação, sem criar uma comissão de inquérito ou estabelecer um painel com especialistas que possam pedir acesso ao país e fazer um levantamento dos crimes. Crises como a da Síria, Mianmar, Burundi, Venezuela, El Salvador e tantas outras contam com comissões de inquérito criadas explicitamente para apurar violações de direitos humanos, o que não aconteceu desta vez com o Afeganistão.

Considerada como aguada, a resolução foi aprovada por consenso. Mas foi alvo de duras críticas por parte de ativistas de direitos humanos, tanto dentro do Afeganistão como fora.

Sem a perspectiva de uma resolução forte, a Comissão de Direitos Humanos do Afeganistão acusou a comunidade internacional de estar "falhando" na proteção da população afegã e fez duras críticas contra os governos estrangeiros por "não agir".

Nasir Andisha, um diplomata ainda representando na ONU o governo deposto do Afeganistão, lamentou o resultado final. Segundo ele, "milhões" de afegãos hoje estão ameaçados.

A entidade Human Rights Watch foi dura. "Essa resolução é mais um insulto que uma resposta", disse. Para a ong, os governos não criaram "nada novo", já que a ONU já têm a função de monitorar eventuais violações de direitos humanos. "Como vocês vão explicar às famílias das vítimas?", questionou a entidade, num discurso durante o debate.

Outras ongs ainda apontaram como o texto colocado ao voto sequer condena a violência por parte do Talibã.

A própria UE deixou claro a sua,insatisfação, indicando que não via sentido num documento que sequer condenava os atos do grupo islâmico e nem cria um mecanismo para apurar os responsáveis. Ainda assim, o bloco optou por não votar contra o documento, alegando que ele pelo menos coloca a questão dos direitos humanos na agenda internacional.

A resolução, porém, foi aplaudida por Paquistão, China e outros governos que não defendem investigações internacionais. O governo russo chegou a propor que a resolução criticasse a "invasão estrangeira", uma forma de fazer referências aos atos dos EUA. Mas o texto não foi aprovado.

Troca de farpas

A falta de uma ação mais clara foi resultado de um impasse entre potências e países vizinhos ao Afeganistão sobre como tratar a queda de Cabul. China, Rússia e Paquistão, além de Irã, Cuba e Venezuela eram contrários a uma ação mais dura.

O governo americano não faz parte do Conselho de Direitos Humanos como membro pleno. Mas, ainda assim, atuou nas negociações do texto final e pressionou seus aliados dentro do órgão para defender sua posição.

Longe de um entendimento, a reunião na ONU deixou claro que não existe um consenso sobre o Talibã. O governo da China não deu sua chancela para a convocação do encontro e tampouco apoiou a ideia de um mecanismo de investigação.

Pequim insistiu que o Talibã já teria dado demonstrações de que está disposto a formar um governo com diferentes atores e que irá proteger os direitos de mulheres e meninas. Os chineses, num discurso duro, optaram por criticar os governos dos EUA. Reino Unido e Austrália pela ocupação militar dos últimos anos. "Eles precisam ser responsabilizados", disse a delegação de Pequim. Para a China, o caos atual deve servir como "lição" ao Ocidente.

"Os EUA, Reino Unido, Austrália e outros países devem ser responsabilizados pela violação dos direitos humanos cometida pelos seus militares no Afeganistão e essa sessão deve cobrir esta questão", disse o embaixador da China, Chen Xu.

"Sob a bandeira da democracia e dos direitos humanos, os EUA e outros países realizam intervenções militares em outros estados soberanos e impõem o seu próprio modelo a países com uma história e cultura muito diferentes", disse. "Isso trouxe grande sofrimento", afirmou o diplomata.

Pequim já havia assinalado que está disposto a manter relações "amistosas" com o Talibã e, nesta terça-feira, voltou a dar seu apoio em um encontro formal na ONU.

Em resposta, a subsecretária de estado norte-americana, Uzra Zeya, defendeu os avanços dos últimos 20 anos no que se refere aos direitos humanos e insistiu que tais conquistas não podem ser desfeitas.

Ela pediu a proteção da população civil, ativistas e jornalistas. A Casa Branca condenou a violência no país e pediu que todos os afegãos que queiram sair do país sejam autorizados a cruzar as fronteiras. Para os americanos, apenas um acordo político pode colocar fim à crise.

O governo brasileiro também tomou a palavra durante o encontro e defendeu que a resolução a ser votada ainda no dia de hoje seja mais robusta no que se refere à criação de um mecanismo de investigação e monitoramento.

O Itamaraty alertou que está preocupado especialmente com a situação de mulheres, ativistas e minorias religiosas. Para o governo brasileiro, os avanços em direitos humanos dos últimos anos não podem ser desfeitos.

Já Venezuela e Irã criticaram os americanos, enquanto o governo de Cuba também optou por usar a reunião para denunciar os EUA. "Os americanos são diretamente responsáveis por essa situação", disse a delegação de Havana. "Em 20 anos, 100 mil civis morreram ou ficaram feridos. Não vamos parar o terrorismo com bombas", alertou. "Sem que os americanos agiram para promover a democracia, caos e mortes prevaleceram", disse.

Crimes cometidos, inclusive contra mulheres

A avaliação da China sobre a confiança na palavra do Talibã, porém, não é compartilhada pela ONU que confirmou que o avanço do grupo pelo Afeganistão foi permeado por crimes e pediu que a comunidade internacional estabeleça um mecanismo formal para monitorar o grupo fundamentalista e suas promessas.

Na abertura do encontro, coube à Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, fazer um raio-x da situação no país. Sua constatação: crimes foram cometidos e mulheres e meninas foram já alvo de limitações impostas pelo Talibã, além de execuções sumárias, tortura e atos contra a liberdade de expressão.

Os dados se contrastam com as promessas do grupo que, ao tomar Cabul, insistiu que não haveria nem vingança e que os direitos das mulheres estariam garantidos.

Antes da votação, Bachelet fez um apelo para que houvesse um consenso internacional para que a ONU pudesse realizar suas investigações. Mas seu pedido não foi atendido.